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Ex-Votos


Ex-voto português a N. Sra da Oliveira – século XVIII (Fonte: FERREIRA Luís Gomes. Erário Mineral IN FURTADO, Júnia Ferreira (org). Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Fundação João Pinheiro / FIOCRUZ, 2002.)


Nordeste brasileiro – século XX (Imagem em www.galeriabrasiliana.com.br)
 

As paredes das Salas dos Milagres dos santuários e centros de peregrinação estão repletas de ex-votos, testemunhos da fé do povo, que agradece pelas graças recebidas e oferece a seus intercessores um quadro pintado no qual o que é considerado um milagre é descrito, uma escultura de madeira ou barro que represente a parte do corpo curada, e, mais recentemente, uma imagem em cera, uma fotografia, uma peça de roupa, muletas, bilhetes, e uma série infindável de registros de piedade popular.


Sala dos Milagres do Santuário de San Juan de Los Lagos – México (Imagem em www.mexicodesconocido.com.mx)


Sala dos Milagres em Congonhas do Campo – Minas Gerais (1983) (Imagem – coleção particular)


Sala dos Milagres da Igreja do Senhor do Bonfim, em Salvador, na Bahia (Imagem em www.senhordobonfim.org.br)

São registros ricos do imaginário coletivo sobre a vida e a morte, e documentos preciosos para a compreensão das representações do universo religioso.

Ex voto mexicano, provavelmente do século XIX, que representa uma alegoria da redenção (Imagem: www.mexicanretablos.com)

 

No centro do quadro está o Cristo crucificado, ladeado por uma Nossa Senhora das Dores e um São Miguel. São eles os mediadores entre a terra e o céu, onde aparece Deus Pai e o Espírito Santo, além do sol e da lua, presença de referências culturais ancestrais no caso do México e citação do trecho evangélico da crucifixão. Na parte inferior da imagem é possível identificar a cena bíblica de Adão e Eva ao comer o fruto proibido, origem de todo pecado, e 10 almas do purgatório, a espera da redenção. Ao fundo, contra um céu azul estrelado, estão pintados em branco os instrumentos da paixão de Cristo.
 



A Mão Poderosa, ex-voto mexicano do século XIX que representa o poder mediador do sacrifício de Cristo (Imagem: www.mexicanretablos.com)

No centro da pintura está a mão chagada do Cristo crucificado, da qual o sangue se derrama sobre um cálice sustentado por 7 cordeiros, que representam os sete sacramentos. Na parte lateral esquerda estão alguns signos da paixão: o galo que cantou 3 vezes quando Pedro traiu o Cristo, a lança com a esponja embebida em fel, o açoite da flagelação.
Na parte superior do quadro, que sempre é alusiva ao céu, está pintada uma sagrada família. No centro, sobre um globo, está o menino Jesus ladeado por Maria e por S. José, ao lado dos quais estão S. Joaquim e Santana, os pais de Maria.

Até o século XIX, no Brasil como em toda a América latina predominavam os ex-votos pintados, por vezes com inscrições que personificavam e explicavam a cena pintada, como atestam esses ex votos mineiros.


Ex-votos mineiros do século XVIII, em agradecimento a curas consideradas milagrosas (Imagens cedidas pela profª Júnia Ferreira Furtado, do Departamento de História da UFMG)


Ex-voto mexicano de 1915 (Imagem em www.stnicholarcenter.org)

Aconteció al señor Cristino Paleta, vecino del rancho de Tulimic, comprensión de Colotitlan, el que se aparecía debajo de su cama um diablillo que no le dejaba em paz, y se encomendó a San Nicolasito y santo remedio, por lo que pone el presente retablito, dando las gracias com mucha devoción.  1915

A alusão ao “diabinho” que não deixava o devoto em paz, a predominância do vermelho na “ruana” (capa) do fiel e no diabinho e a intercessão de S. Nicolau permitem pensar que se trata de um caso de epilepsia.

Mais recentemente e, em especial, no nordeste do Brasil, os ex-votos esculpidos em madeira e que representam uma doença ou uma parte do corpo tornam-se mais freqüentes.


(Imagem em www.mre.gov.br)
 


(Imagem em www.galeriabrasiliana.com.br)

Os ex-votos são uma arte da memória da fé do povo.

 

 


(Imagens de ex-votos do Rio Grande do Norte. Coleção particular)

Entre as muitas cabeças ofertadas em ação de graças por curas de alguma doença que afetava essa parte do corpo, algumas, possivelmente, digam respeito à cura de crises epiléticas.
 

Na Itália e na Alemanha foram identificados vários exemplos de ex-votos relativos à epilepsia, como os exemplos que se seguem, em que a atitude de descontrole corporal do doente em crise, e as alusões à doença como possessão demoníaca são freqüentes.

Ex voto que data, aproximadamente, de 1510, de Altötting, na Bavária (Imagem em www.epilepsiemuseum.de)

 

 

Nesse ex-voto aparece uma jovem vestida de vermelho, a cor que acreditava-se, espantava o demônio, em plena crise, amparada pelo pai enquanto sua mãe reza à Nossa Senhora, que aparece ao fundo, com o menino no colo.



 

Retábulo não datado com o relato de um milagre de cura de uma criança epilética em uma capela de Altötting, na Alemanha (Imagem em www. epilepsiemuseum.de)

 

Note-se a predominância do vermelho, o terço vermelho nas mãos da mãe e o colar de contas vermelhas no pescoço da criança, um amuleto contra as crises.
Acreditava-se que o vermelho espantava os demônios.  Por isso as sementes de peônia, de papoula, as raízes de berinjela, e outras sementes e plantas vermelhas eram utilizadas como remédios para a epilepsia.
Nesse retábulo alemão do século XVIII, pintado sobre três tábuas, o próprio Cristo, seguido por seus discípulos, cura um jovem epilético, que é representado acorrentado e expelindo de dentro de si um demônio.

 

 

 

Ex voto c. 1750 da igreja luterana de Krummenau, na Alemanha (Imagem em www.epilepsiemuseum.de)
 

Com esse quadro, dou muitas graças porque a promessa que fiz nessa santa capela foram ouvidas e porque a Rainha do Céu me deu socorro e graça e salvou meu filhinho do grande perigo dos ataques e das convulsões”.


Essa é a inscrição que se encontra na parte inferior desse ex-voto alemão do século XVII, no qual aparece uma mãe em atitude de súplica e, no berço, uma criança coberta com uma manta vermelha.


Ex-voto de Jestetten, sul da Alemanha, datado de 1668 (Imagem em www.epilepsiemuseum.de)


Cura de uma epilética – Ex-voto c. 1700 – Itália – Madona dei Bagni - Umbria (Imagem em www.epilepsiemuseum.de)
 

Datado do século XVIII, esse ex-voto italiano representa uma doente já depois de curada.   Os demônios que saem de seu corpo são uma das representações freqüentes da epilepsia.

As letras P.G.R. significam Per grazia ricevuta (Pela graça recebida), no caso pela intercessão de Nossa Senhora, que parece com o menino nos braços e em meio aos ramos de uma árvore, alusão à árvore da vida, portadora da salvação, por contraposição à árvore do fruto proibido, de onde veio o pecado e o mal, e que talvez esteja representada alegoricamente à esquerda da mulher curada da crise.


Ex-voto a Nossa Senhora – Landau, Alemanha - 1766 (Imagem em www. epilepsiemuseum.de)

Aqui, é a atitude corporal da menina que permite identificar a cura de uma crise de epilepsia:  caída por terra, em desalinho, com os membros inferiores e superiores em atitude de descontrole e babando.
As cores da roupa da menina, que aparentemente foi vítima de uma crise no caminho para buscar água no poço, também são pistas eloqüentes:  o vermelho, acreditava-se, afastava os demônios, sempre associados às convulsões, e o preto representava o pecado dos doentes ou de seus pais castigados com a epilepsia.
No céu, Maria, com o menino Jesus no colo, é representada como a mediadora da cura da crise, datada no medalhão que aparece no canto esquerdo do ex-voto.
Também nesse ex-voto alemão do século XVIII o milagre da cura de uma crise epilética aparece representado em dois planos, o da terra, onde um pai reza por seu filho em crise, no chão, em atitude de descontrole e com o corpo em arco, ambos com camisas vermelhas. As roupas e atributos permitem inferir que os devotos eram de uma família de posses. No céu descortina-se a mediação da graça, no caso, através de Santo Antonio.
A data da graça alcançada encontra-se registrada à esquerda: 1773.


Ex voto da Capela de Sto. Antonio em Haidlfing, Alemanha - 1773 (Imagem em www. epilepsiemuseum.de)
 

Rico do ponto de vista iconográfico, esse ex-voto alemão de inícios do século XIX mostra, no plano da terra, ao centro, a menina caída no chão com todos os atributos da representação das crises epiléticas, tendo, à sua esquerda, a mãe em oração, pedindo a graça da cura à Santa Anastácia.  À direita, além do medalhão com a data da promessa (1816), está o mosteiro de Benediktbeuren, que guarda as relíquias da santa, pintado com riqueza de detalhes.
No plano do céu, estão Santa Anastácia, a mediadora do milagre, com a palma do martírio e a coroa das virgens, sobre a fogueira na qual foi queimada.  Mais no alto, está outra mãe, a mãe de Cristo com o filho morto nos braços – cuja atitude corporal se aproxima à da menina -, e que se apieda do  sofrimento na terra.  O texto escrito agradece à Sta Anastácia e a Jesus Cristo a graça da cura.


Ex-voto a Santa Anastácia – 1816 - Alemanha (Imagem em www. epilepsiemuseum.de)

 


Ex voto a S. Valentim - 1843 da igreja Mariahilfberg, em Passau (Imagem em www.epilepsiemuseum.de)

Outro ex-voto alemão do século XIX (1843) representa a cura de uma menina em crise e resume a iconografia piedosa mais usual sobre essa doença ao distinguir com clareza o plano da terra, onde a família – duas mulheres e duas crianças – reza pela menina em crise, enquanto no plano do céu, São Valentim intercede por sua cura à Maria, que aparece com o menino Jesus no colo.
A data está inscrita no medalhão e a descrição da graça recebida no texto manuscrito na parte inferior da pintura.

O ex-voto alemão e não datado ao lado é facilmente identificado como o agradecimento pela cura de dois irmãos epiléticos.

 
Nele aparecem ajoelhados em oração os pais das crianças, em trajes de nobreza, e pedindo a intercessão de S. Valentim, um dos padroeiros dos epiléticos.  Os filhos, em crise, são representados no chão, com os corpos descontrolados e crispados.  Na parte inferior aparece um porco, representação zoomórfica do demônio.
 

 


(Imagem em preto e branco em www.lpce.pt
Colorizado por computação gráfica)

Na tradição ibérica, a epilepsia é considerada um “malefício”, que implica, portanto, a ação demoníaca.  Talvez por essa razão, sejam mais raros os ex-votos diretamente referidos à epilepsia no Brasil como em Portugal. 


Ex-votos de cura, não específicos, dedicados a N. Sra da Conceição, provavelmente do século XVIII e XIX, originariamente da Capela da Ribeira e hoje conservados no Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis – Rio de Janeiro

Nesse ex-voto, ao contrário dos demais que compõem a coleção de Angra dos Reis, o doente é representado com o corpo em desalinho no leito e com as pernas e pés contraídos.  Ainda que não haja uma referência explícita à epilepsia, essa particularidade pode sugerir tratar-se de um caso dessa doença.

A inscrição, na parte inferior está quase totalmente apagada pelo tempo, e não permite a identificação do milagre.


Ex-voto a N. Sra da Conceição, provavelmente do século XVIII, originariamente da Capela da Ribeira e hoje conservado no Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis – Rio de Janeiro

São Benedito, filho de africanos escravizados na Itália, era um dos santos mais cultuados pelos escravos e era o padroeiro de muitas irmandades de negros.  Nesse ex-voto, dedicado ao santo, aparece um homem negro, aparentemente atado à cama e com as pernas em arco, o que poderia indicar um caso de epilepsia.  A inscrição, primitivamente colada à parte inferior do quadro, infelizmente, perdeu-se.


Ex-voto a São Benedito, provavelmente do século XIX, originariamente no Convento de São Bernardino e hoje conservado no Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis – Rio de Janeiro

Nesse ex-voto mineiro datado de 1822 não há uma alusão direta à epilepsia, mas a atitude corporal do menino negro por quem sua mãe roga a Nossa Senhora do Carmo sugere a representação iconográfica mais usual da doença.
 


Reprodução colorida
Transcrição e atualização da grafia do texto:
“Mercê que fez Nossa Senhora do Carmo a Filisberto d’Mça [de Moçambique?] que tendo uma criança à morte e já sem sentidos, a mãe da dita apegou-se com a dita senhora e logo teve melhoras no ano de 1822.”
Coleção Márcia de Moura Castro - Belo Horizonte – MG.
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional.


Reprodução em preto e branco
Fonte: FERREIRA Luís Gomes. Erário Mineral IN FURTADO, Júnia Ferreira (org). Vol. 2. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Fundação João Pinheiro / FIOCRUZ, 2002. p. 821.
 

Texto de Margarida de Souza Neves - 2005

Bibliografia sobre ex-votos:

ABREU, Jean Luiz Neves. O imaginário do milagre e a religiosidade popular. Um estudo sobre a prática votiva nas Minas do século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2001. (dissertação de mestrado. Mimeo) (pode ser consultada no site www.capes.gov.br)

AUGRAS, Monique. Todos os santos são bem-vindos. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.

BOSCHI, Caio Cesar. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986.

CASTRO, Márcia de Moura e. Ex votos mineiros. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1994.

MATTOS, Maria Emília. “Ex-votos”. IN Catálogo da Exposição da Ordem Franciscana. Angra dos Reis: Museu de Arte Sacra, 1994.

NEVES, Guilherme Pereira das. “Um mundo encantado: religião e religiosidade ao fim do período colonial.” IN Oceanos, nº 42 Lisboa: abril / junho de 2000.

REINAUX, Marcílio. Aspectos artísticos e históricos da estatuária e dos ex- votos do Nordeste. Recife: UFPe, 1988. (dissertação de mestrado. Mimeo).

ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam ao céu. Relações entre cultura popular e erudita no Brasil do século XVI. Campinas: UNICAMP, 1991. (Dissertação de mestrado. Mimeo).

SCARANO, Julita. Cotidiano e solidariedade. A vida diária da gente de cor nas Minas Gerais. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SCARANO, Julita. Fé e milagre: ex-votos pintados em madeiras. Século XIII e XIX. São Paulo: EDUSP, 2002.

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TORRES-LONDOÑO, Fernando. “Imaginária e devoções no catolicismo brasileiro”. IN Revista Projeto História, nº 21. São Paulo: PUC- SP/Programa de Pós-Graduação em História, novembro de 2000.

Uma História Social da Epilepsia
no Pensamento Médico Brasileiro

História - PUC-Rio