O Sertão (En)cantado: cores e sonoridades.

Margarida de Souza Neves[1]
Capítulo de livro a ser publicado no livro STARLING, Heloisa et al (orgs). Decantando a República, no prelo. Este capítulo de livro se origina em uma comunicação oral apresentada no Seminário Decantando a República, realizado na PUC-Rio de 11 a 13 de Setembro de 2001.

Quis o acaso que o seminário para o qual esse trabalho foi escrito tivesse início no dia 11 de setembro de 2001, data para sempre associada ao silêncio do desconcerto e do medo. Enquanto procurávamos decantar as relações entre a MPB e essa peculiar república que é a nossa, na qual a res pública ainda está longe de superar os impasses de todos os nossos tempos vividos para encontrar alguma afinação que nos permita cantar em coro, e que nos vem mostrando o perigo e a inutilidade dos virtuosismos canoros individuais, as telas de todas as televisões reproduziam, uma e outra vez, a cena insólita dos aviões atingindo as duas torres gêmeas do World Trade Center e o Pentágono, símbolos maiores do poderio do Império Americano.
O mesmo acaso que fez o início dos debates do seminário Decantando a República coincidir com o dia 11 de setembro de 2001, trouxe para o título previsto para a mesa na qual esse trabalho se inseria, A cidade não mora mais em mim, sonoridades imprevistas diante das quais as palavras – faladas ou cantadas – parecem mostrar apenas seu viés de impotência e de limitação.
Mais uma vez foi o acaso que fez com que o tempo transcorrido entre a apresentação oral feita no seminário e sua transformação em texto escrito, coincidisse com o momento em que uma guerra de novo tipo sacudisse o mundo, opondo, de um lado, a maior potência de todos os tempos, e, de outro, se dermos crédito à versão ocidental do conflito, um indivíduo escondido em algum lugar de um país já devastado por outras guerras. Nas batalhas travadas, os exércitos não se confrontam. De um lado, toneladas de bombas são detonadas a partir de computadores situados a milhares de quilômetros de seus alvos, e mísseis teleguiados, capazes de perfurar rochas, partem de aviões que os radares não podem detectar. De outro, cartas manuscritas aparentemente inocentes semeiam o pânico ao disseminar bactérias mortais. Pouco a pouco, o velho discurso que opõe civilização e barbárie, a redução de conflitos complexos entre tradição e modernidade a uma equação simplista cujo resultado se resume à oposição maniqueísta entre o bem e o mal, e os fundamentalismos de todas as colorações foram ganhando terreno com seu cortejo de violências, preconceitos e intolerâncias. E alguns analistas sublinharam a perfeita equivalência entre o discurso emocionado do chefe de estado norte-americano no Capitólio e sua tradução cultural nas palavras do milionário saudita que decidiu fazer justiça em escala planetária com suas próprias mãos, e que, de algum lugar ermo e desconhecido, falava ao mundo. Tanto um quanto outro se arvoravam em paladinos do bem, intérpretes de todo um povo e sublinhavam sua autoridade com referências ao poder e desígnios de alguma divindade e com a demonização de seus agressores.
Sabem os que fazem da História ofício e lugar de seu específico exercício de cidadania no campo intelectual, que quando o acaso repercute sobre a história vivida, não devemos ignorar suas sonoridades inesperadas.
Por essa razão, ao iniciar essa reflexão sobre um aspecto bem determinado da canção brasileira que revela as tensões entre cidade e sertão, vale dizer, entre modernização e tradição, é bom ter presente na lembrança – e registrá-la no suporte escrito que fará menos volátil essa memória – o acaso que fez com que as condições de contorno de sua formulação a inscrevessem num espaço/tempo muito particular, que, se por um lado pode sublinhar a certeza de que mais que nunca é preciso cantar, por outro não deve permitir esquecer que nossos cantares não podem ser sem pecado um adorno, como afirma a poesia do espanhol Gabriel Celaya, mais conhecida justamente porque foi musicada em 1969 por Paco Ibañez[2].
O objetivo desse texto é duplo. Em primeiro lugar, e a partir do reconhecimento explícito de minha ignorância específica no que diz respeito à linguagem musical e à música – que apenas ouço com prazer – quero trazer para a reflexão conjunta uma poesia quase desconhecida publicada em 1926 por Luís da Câmara Cascudo, que atinge um público maior quando musicada por Gereba em 1999. Em sua origem textual como em sua versão musicada, a poesia é reveladora das diferentes representações do sertão como lugar de síntese do Brasil e da cultura brasileira. Em segundo lugar, ao contrastar a trajetória intelectual e o lugar social do folclorista potiguar e do músico baiano, o texto pretende por em evidência, a partir da parceria insólita entre ambos, as complexas relações entre história e memória das quais a canção é um vetor e pode ser uma evidência.
Tem sentido pensar o que representa o sertão na canção popular brasileira em geral e, de forma mais particular, analisar essas representações através de um estudo de caso, por inúmeras razões. Apenas para destacar algumas delas que, postas em conjunto, cumprem uma função análoga àquela da clave inscrita na pauta musical, conferindo significado às notas esboçadas na reflexão aqui proposta, cabe lembrar que o sertão aparece para uma linhagem de intelectuais brasileiros como o lugar onde é possível encontrar o Brasil genuíno[3]. Cabe ainda assinalar que o sertão, entendido por alguns dos que pensaram e pensam o Brasil como o lugar da tão ansiosamente buscada epifania do que somos, é relevante para entender o pensamento desses intelectuais e útil para pensar a história da cultura brasileira e dos que, entre nós, produzem cultura [4].
Ao sugerir, no entrecruzamento dessas duas coordenadas, a clave da escrita deste texto, não é outra a intenção senão a de afinar a voz no diapasão proposto pelos organizadores do Seminário que, na breve introdução à seleção de canções feita pelos bolsistas de Iniciação Científica vinculados ao Projeto Decantando a república, assim resumem a intenção da mesa A cidade não mora mais em mim. Sertão, Litoral, Modernidade, Modernização:

[...] Três leituras surgem, na MPB, de maneira mais constante: em uma delas, a mais conhecida, sertão representa a força primitiva de uma região ainda em trânsito entre natureza e cultura, dominada pela resistência ao moderno e imersa na tradição; em uma segunda leitura, o sinal se inverte e o sertão preserva algo da gênese da nação, produzindo, senão um gesto, um lugar fundador na cena imaginária da nacionalidade – uma espécie de começo histórico marcado não mais pela chegada do português e pela ocupação do litoral, mas pela conquista de sua própria e interminável vastidão interior. Já a terceira leitura, procura colocar em causa os limites entre os dois brasis dando à nossa modernidade feições de contraponto e contraste: o país litorâneo, urbano, que participa das benesses da moderna civilização capitalista ocidental e o outro, excluído desse processo; ou ainda, o Brasil profundo, genuíno, mítico, cerne de uma pretensa identidade nacional e sua antítese, o litoral, supostamente contemporâneo, lugar de aparência e cópia reverberando uma cultura de elite alienada de si própria”[5]

É na tensão entre essas três leituras que se situam as cores e as sonoridades do sertão decantado pela poesia de Câmara Cascudo na música de Winston Geraldo G. Barreto, o Gereba.

Verso e canção
Para comemorar os quatrocentos anos do dia 25 de dezembro de 1599, data em que Jerônimo de Albuquerque, meio índio, meio fidalgo [6], fundou a cidade de Natal, o Rio Grande do Norte multiplicou iniciativas. Dentre elas, a gravação do CD Nação Potiguar.
Bem cuidado, o CD gravado entre fevereiro e junho de 1999, vem encartado num livreto com belo projeto gráfico de Cláudio Damasceno, em cujas páginas é possível encontrar as letras das melodias e uma rica iconografia sobre autores e intérpretes e sobre a própria cidade.
Da pesquisa que precedeu à gravação, participaram intelectuais expressivos, como o professor de literatura Humberto Hermenegildo de Araújo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e produtores culturais como Dácio Galvão e Candinha Bezerra. Na capa, um trabalho do artista plástico Natalense Abrahan Palatnik sublinha o desejo de reunir representantes de todas as artes da região em torno à iniciativa. E no disco propriamente dito, 18 composições entre fados, valsas, dobrados, repentes, rocks, cocos, rasta-pés, forrós, toadas, catimbós, pastoris, romances e choros reúnem, entre seus autores, o melhor da cultura popular norte-rio grandense, representada, entre outros, por Chico Antonio, o coquista que encantou Mario de Andrade e Aloísio Magalhães; por Fabião das Queimadas, escravo que comprou a própria alforria e tocador de rabeca, cujo romance A morte do touro da mão de pau, de 48 estrofes, foi fixado por Câmara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores [7] e recriado por Ariano Suassuna e ainda pelo repentista Severino Ferreira. A eles se juntam os representantes máximos da cultura letrada potiguar tais como Jorge Fernandes, Luís da Câmara Cascudo e Othoniel Menezes. Entre os músicos que participaram da gravação, estão nomes que dispensam apresentações, tais como Hermeto Paschoal, Antônio Nóbrega, Gustavo Lamartine, Chico César, Antúlio Madureira, K-Ximbinho, Gereba e também as vozes anônimas dos cantos e folguedos populares.
Disco-síntese, o CD congrega gêneros, dilui distâncias temporais, reúne artes e artistas e pretende situar-se na interseção de latitudes culturais e longitudes sociais representativas da pluralidade e diversidade da gente brasileira metonimizada na Nação Potiguar.
Disco-comemoração, seleciona, registra, esquece, re-inventa, na construção sempre fiel e sempre móvel que é própria dos trabalhos da memória, como assinala Jacques Le Goff [8]. Não é de estranhar portanto, que ao propor a festa dos 400 anos de Natal como uma espécie de antecipação e prólogo da celebração dos 500 anos do Brasil o CD introduza seus cantos e danças pela oposição e a complementariedade entre o que qualifica de Império do Litoral e de Reinado do Sertão [9].
E por ser síntese e memória, supera contradições e traz, numa de suas faixas, a parceria paradoxal entre os versos de Luís da Câmara Cascudo e a música de Gereba.
Cumpre, em primeiro lugar, esclarecer que o paradoxo não reside na união dos versos modernistas escritos em 1926 por um Cascudo ainda jovem com a melodia composta por Gereba, músico experiente, em 1999.
Na faixa que reúne Câmara Cascudo e Gereba, e que leva por título os primeiros versos do poema de Cascudo, Não gosto de sertão verde, o paradoxo está no lugar assumido por cada um dos co-autores na história cultural brasileira, lugar esse que os situa em polos ideológicos opostos pelo vértice, mas que inscreve a ambos no mesmo círculo, definido pela compreensão comum a ambos – ainda que por distintas razões e, certamente, com diferentes implicações – de que é no sertão que o Brasil se revela em toda sua verdade. E encontra na crença comum da importância e do significado do sertão no imaginário brasileiro - ainda que essa crença encontre base em doutrinas opostas e, sem dúvida, sejam diversas as esperanças do músico daquelas que animaram o autor dos versos – o nexo que permite a compreensão da insólita parceria entre ambos.
Para que as dissonâncias entre os versos e a música sejam perceptíveis, faz-se necessária uma operação analítica que permita situar Cascudo e Gereba. Esse será o primeiro movimento do texto. E para que a harmonia paradoxal entre letra e melodia seja intuída, uma vez que a experiência insubstituível da audição – factível no momento do Seminário – não pode ser transposta para o texto, resta a possibilidade aberta por uma reflexão sobre a memória, que os antigos sabiam ser uma forma de conhecimento iniciático, preservada no que chamavam ars memoriae, que por ser arte da memória permitia um aprendizado pelo coração – de cor, como dizemos hoje, ainda que quase sempre inconscientes dos significados que essa expressão encerra. Esse pretende ser o segundo movimento aqui empreendido.

Dissonâncias e harmonias
Luís da Câmara Cascudo é um intelectual norte-riograndense mais citado do que lido na Academia, apesar de sua inconteste monumentalização no Rio Grande do Norte e de sua produção gigantesca – mais de 160 livros publicados - ainda que desigual como folclorista, etnógrafo, poeta modernista, cronista, romancista, memorialista, historiador, biógrafo, correspondente assíduo de intelectuais brasileiros das mais variadas latitudes geográficas e ideológicas durante toda sua longa vida (1898 – 1989) e autor do sempre consultado Dicionário do Folclore Brasileiro. Cascudo não se alinha entre os grandes pensadores do social no Brasil ou entre os grandes escritores brasileiros. Isso não o faz menos interessante para o historiador.
Músico não foi, mas foi professor de História da Música no Instituto de Música do Rio Grande do Norte a partir de 1933. Era monarquista esse amigo de todos os governos republicanos no seu estado de origem e no âmbito federal. E, como títulos nobiliárquicos que especificavam seu lugar de enunciação e a linhagem a que pertencia, por um lado, assumiu como sobrenome, tal como já o fizera seu pai, o apelativo atribuído aos conservadores dos tempos do Império no Rio Grande do Norte, CASCUDO, e, por outro, elegeu como elemento de auto-definição o que dele dissera um dia Afrânio Peixoto, ser um provinciano incurável [10] – o que nunca pegou um ita no Norte e veio pro Rio, ou para São Paulo, morar -, e, como elemento de legitimação de sua autoridade etnográfica sua raiz familiar e sua experiência sertaneja:
“Menino, fui com minha mãe para o Sertão. (...) Não estudei a vida sertaneja há mais de meio século. Vivi-a integralmente. Todos os motivos de pesquisa foram inicialmente formas de existência natural, assombrações, alimentos, festas, soluções psicológicas.” [11]

Nos anos 20, Cascudo, então o jovem dândi de monóculo, polaina e uma bengala da Índia [12], solteiro e disputado pelas moças de Natal [13], abandonara no quarto ano o curso de medicina feito na Bahia e no Rio de Janeiro em função de dificuldades financeiras familiares e atuava na imprensa e nas rodas da boêmia literárias natalense.
Na primeira metade dessa década fervilhante na cultura nacional, Cascudo, prenunciando sua vocação de polígrafo, publicou livros de crítica literária [14], estudos históricos[15] e folclóricos[16]. É também nesse momento, mais precisamente em 1924, que inicia a amizade e sua significativa correspondência com Mario de Andrade, que perdurariam até 1944, quando divergências intelectuais parecem ter afastado os dois amigos[17].
Por obra e graça da amizade com Mario de Andrade, Cascudo é introduzido nas rodas modernistas. E, em 1926, Mario publica na revista Terra roxa e outras terras, à revelia do autor, um poema que Cascudo, também poeta bissexto lhe enviara.
(...)adorei tanto o Não Gosto de Sertão Verde que roubei ele por minha conta e já que você não quis mandar nada pra Terra Roxa, dei o poema pros redatores, que por sinal se entusiasmaram também” [18]

Fundada em janeiro desse mesmo ano, Terra Roxa era revista importante nos meios modernistas paulistanos. Seu principal crítico literário foi Sergio Milliet, e nela publicavam também Drummond, Alcântara Machado, o próprio Mario de Andrade, Antonio Couto de Barros, e alguns modernistas nordestinos, entre os quais Jorge Fernandes, o mais expressivo poeta do Rio Grande do Norte.
O poema de Luís da Câmara Cascudo publicado em Terra Roxa, foi dedicado a Manuel Bandeira. Em carta à Bandeira, Mario expressa todo seu entusiasmo com a poesia do amigo potiguar ao escrever, comentando o poema: acho aquilo uma maravilha [19]. Mais contido, Manuel Bandeira, o homenageado, responderá apenas: Li o poema da Terra Roxa e gostei muito [20].
Moderna na forma e no conteúdo, essaa poesia de Cascudo expressa algumas facetas de sua leitura sobre o sertão:

Não gosto de sertão verde,
Sertão de violeiro e de açude cheio,
Sertão de rio descendo
l
  e
   n
     t
        o
largo, limpo,
Sertão de sambas na latada,
harmônio, bailes e algodão,
Sertão de canjica e de fogueira
- Capelinha de Melão é de São João,
Sertão de poço de ingazeira
onde a piranha rosna feito cachorro

e a tainha sombreia de negro n’água quieta,
onde as moças se despem
d
  e
     v
       a
           g
               a
                   r
Prefiro o sertão vermelho, bruto, bravo,
com o couro da terra furado pelos serrotes
hirtos, altos, secos, híspidos
e a terra é cinza poalhando um sol de cobre
e uma luz oleosa e mole
e
   s
      c
         o
            r
               r
                    e
como óleo amarelo de lâmpada de igreja.[21]


Em primeiro lugar, cabe assinalar um dado curioso: a tentativa de inovação formal introduzida por Cascudo ao grafar obliquamente três palavras, lento ; devagar e escorre – que ele possivelmente acreditasse ser o elemento mais moderno no poema, foi criticada por Mario de Andrade, que comenta em carta escrita ainda em 26:
essas ideografias na verdade são falsas e também caí nelas e errei. Na verdade não dizem nada mais que o que a imaginação do leitor inteligente bota de si no poema. [22]

De imediato, chama a atenção do leitor a oposição entre o sertão verde, que o inverno nordestino enche de vida em movimento e o sertão vermelho, sertão-terra (a palavra aparece repetida duas vezes no poema) e sertão-templo, sugerido apenas pela alusão à luz oleosa e mole que escorre como óleo de lâmpada de igreja . Para o poeta, que não hesita em afirmar não gosto de sertão verde, é o sertão bruto, bravo, hirto, alto, seco, híspido, que parece suspender o tempo, o sertão de sua preferência.
Para continuar no terreno das metáforas musicais, a idéia de suspensão do tempo pode se constituir numa espécie de refrão, repetido em muitas de suas obras e importante para o entendimento que Cascudo tem do sertão e mesmo da história.
Ao menos é o que sugere outro texto seu, publicado em 1968, ano de tristezas e lutos para a república brasileira, mas de festa maior para Cascudo que em 68 festejou seus 70 anos e os 50 anos de sua atividade literária. Naquele ano, é possível afirmar, consolida-se sua monumentalização em vida, quando, como parte das muitas homenagens que recebeu, a Fundação José Augusto fez publicar um número especial da Revista Província, todo ele dedicado a comemorar o duplo aniversário daquele que, já então, era unanimemente conhecido em Natal como Mestre Cascudo. Na revista comemorativa são convidados a escrever os grandes nomes da cultura nacional, e, apenas para citar alguns deles, nela encontramos os depoimentos de Carlos Drummond de Andrade, Renato Almeida, Gilberto Freyre, Eneida, Jorge Amado e Afonso Arinos de Melo Franco.
Curiosamente, é do próprio Cascudo o texto que abre a revista-homenagem. Ao contrário do que sucedeu com a poesia de 1926, o escrito memorialístico de 1968 não foi musicado por ninguém, mas não é difícil descobrir, mesmo na ausência da frase musical, algum que outro acorde de marcha triunfal. Nele, o então folclorista internacionalmente reconhecido assim resume sua trajetória intelectual:
Queria saber a história de todas as coisas do campo e da cidade.(...)
Convivência dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar, das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. (...) Tudo tem uma história digna de ressurreição e de simpatia.[23]

Aqui a oposição entre o litoral e o seu sertão de pedra aparece substituída por aquela que contrapõe o campo e a cidade. Mas o desejo de historiar todas as coisas vem associado à idéia de encantamento do passado, que, para além de seu sentido mais imediato de paixão constante, não deixa de evidenciar uma conotação complementar, sobretudo se pensarmos que quem a enuncia é o maior dos estudiosos dos nossos contos tradicionais[24], que sabe como nos contos de encantamento o tempo fica suspenso, parado por força de um sortilégio, aguardando que o toque salvífico de alguém capaz de romper o feitiço permita a ressurreição. Não caberia melhor síntese do que significa para Câmara Cascudo, a história e o ofício do historiador.
Talvez por isso o sertão de sua preferência não seja o sertão verde dos invernos férteis, onde tudo é vida e movimento, o açude cheio, o rio descendo, o algodão florido, os sambas nos alpendres das moradas sertanejas, os bailes e festas de São João enchendo de música as noites, as moças que se despem lânguidas para o banho no poço da ingazeira. O sertão de seu encantamento é outro, o da terra cinza poalhando um sol de cobre, o sertão seco onde o tempo parece suspenso, sertão que fossiliza a vida dos homens, dos animais e das plantas, o couro da terra furado pelos serrotes, deixando à mostra a essência das coisas.

Uma última anotação complementar: a poesia de 1926, posta em confronto com outro de seus escritos de temática sertaneja, a série de dezoito crônicas escritas em 1934, quando, a convite do interventor federal nomeado pelo Estado Novo, viaja sertão a dentro. Essas crônicas, posteriormente reunidas no livro Viajando o sertão[25], sugerem um expressivo contraste de preferências cromáticas de claras implicações políticas que apontam, no ritmo sincopado próprio do gênero, para um contraponto ao mesmo tempo surpreendente e esclarecedor .
Cascudo, que em 26 assegura não gostar do sertão verde em seu discurso poético, é, em 34, um entusiasta do que o verde representa naqueles anos no cenário político. Era integralista convicto, chefe provincial no Rio Grande do Norte desse movimento e coordenador do integralismo no nordeste. Esse conjunto de crônicas[26] possue um valor documental especial, uma vez que estão entre seus pouquíssimos escritos conhecidos em que ele próprio explicita sua filiação e seu lugar proeminente no movimento fascista liderado por Plínio Salgado e que teve em Gustavo Barroso seu principal mentor intelectual. Na construção de sua imagem pública, Cascudo parece ter selecionado outros traços de sua identidade para a posteridade.
De momento, interessa sublinhar que o poema de 1926 parece ter sido, ele mesmo, objeto de algum misterioso sortilégio. Nunca publicado em livro, permaneceu esquecido, desconhecido fora do círculo restrito dos estudiosos do modernismo, e o mato cresceu ao redor dessa canção de amor ao sertão vermelho e ressequido escrita pelo jovem Cascudo até que um dia veio um belo rei, que na forma da toada de Gereba, desencantou o belo poema adormecido nas páginas da revista modernista e o trouxe, pela magia da música, para uma vida nova.
No verão de 1999, a até então quase desconhecida poesia de Cascudo era ouvida com freqüência. No popularíssimo festejo do dia 6 de janeiro em torno da Igrejinha dos Reis Magos, no bairro da Ribeira – beira-rio onde moram os mais pobres - e na sofisticada Capitania das Artes – Centro Cultural mais significativo da cidade, situado justamente em frente da casa em que Cascudo viveu por muitos anos na Ladeira da Ribeira, hoje rebatizada com o nome do folclorista e que une o Centro Histórico ao bairro dos pescadores, jangadeiros e prostitutas – o poema de Cascudo ressoava na voz e no violão de Gereba, seu parceiro post-mortem.
Winston Geraldo G Barreto, mais conhecido por seu nome artístico de Gereba, tem uma trajetória peculiar. Nascido em 1946 em Monte Santo, interior da Bahia, lugar para sempre associado ao movimento liderado por Antonio Conselheiro e que confrontou a miséria do sertão de Canudos à república recém-proclamada no litoral, seguiu o caminho palmilhado por tantos sertanejos, saindo de seu sertão natal para Salvador, e depois para o Rio de Janeiro e São Paulo, onde morou na Vila Madalena entre 1976 e 1984, tendo sido o fundador de dois grupos musicais significativos, os Trovadores Urbanos e o Grupo Bendengó..[27]
Dono de uma discografia significativa [28], Gereba emprestou seu violão para acompanhar apresentações de artistas da antiga, como Silvio Caldas, Alaíde Costa e Inezita Barroso, mas também dos renovadores, como Antonio Nóbrega.
Gereba é sobretudo um recriador de sonoridades populares e da tradição musical sertaneja e nordestina. Sempre distante das gravadoras comerciais e do mundo dos espetáculos de fácil patrocínio, a divulgação de sua música se faz entre grupos de conhecedores, sendo pouco conhecido do grande público. Fiel a suas origens, sua grande obra como compositor e arranjador é, sem dúvida, a saga musical Canudos. Antonio Olavo, fotógrafo, cineasta e militante de esquerda que com Gereba produziu um audio-visual sobre Canudos, o classifica como membro do grupo de compositores comprometidos com a cultura sertaneja[29], juntamente com Fábio Paz e Wilson Aragão.
Em 1998, ano em que, se vivo fosse, Cascudo completaria cem anos, Gereba assumiu o desafio de compor a toada que traduziu em música e fez renascer para o público a bela poesia do folclorista, adormecida desde 1926 nas páginas amarelecidas pelo tempo de Terra Roxa e outras terras. Ao fazê-lo, tinha como referência o Câmara Cascudo unanimemente aclamado como o grande intérprete da cultura popular e da história das coisas miúdas de Natal, do Rio Grande do Norte e mesmo do Brasil, aquele que a memória construiu, distante e distinto do intelectual cuja história o situa num polo ideológico oposto ao que sua música pretende representar.
E o menino vendedor de sorvetes caseiros que ouvi assobiando a toada na frente da Igreja do Galo, no centro de Natal, nunca saberá como seu assobio era expressivo dos misteriosos caminhos que relacionam e distinguem memória e história.
Quais os denominadores comuns possíveis entre o longevo polígrafo norte-riograndense, conservador e amigo da tradição e o compositor baiano que pôs em música a odisséia cabocla de Canudos, na esperança que seu canto invertesse os sinais atribuídos ao verde e ao vermelho por aquele que, sem sabê-lo, tornou-se postumamente seu parceiro?
Em primeiro lugar, para ambos vale a observação posta em palavras por Câmara Cascudo e que ecoa nas sonoridades que Gereba faz brotar de sua viola:
“o sertão exige um existência inteira voltada ao seu amor, ao cuidadoso perpassar de seus anais escritos nos versos alados das modinhas, nos martelos sonantes e nas carretilhas fulminantes.”[30]

Também para ambos o sertão representa o território mágico onde o Brasil se revela. No caso do músico baiano, sua música se transforma assim em cartografia simbólica desse lugar originário. No caso do folclorista-poeta, essa revelação supõe a identificação, nos gestos, nos mitos, nos cantares, na fala, nas lendas e mesmo na alimentação dos sertanejos, tanto da especificidade brasileira quanto da imbricação desta com o universal da cultura. O que é genuinamente brasileiro é, para ele, expressão da particular leitura hierarquizadora que faz do reiterado mito das três raças: sobrevivência negra, participação indígena e permanência portuguesa.[31] E, para buscar as releituras de tradições milenares no cotidiano popular, faz da arqueologia das origens sua tarefa primordial, já que só a pesquisa paciente das concordâncias insólitas entre a oralidade sertaneja e os clássicos da literatura ocidental e oriental pode descobrir o momento em que a cultura brasileira se faz caudatária do imenso rio da cultura universal.
Por fim, também para ambos é no povo, e em particular no povo do sertão, que repousa o tesouro da tradição que nos identifica. Nesse sentido, ambos pretendem ser, cada um a seu modo, intérpretes do povo. Do que é possível inferir da musicalidade de Gereba, para ele, ser intérprete do povo é buscar afinar seu instrumento e sua voz no mesmo tom do coletivo. E esse parece ser o segredo que, para ele, transforma seu canto em mediação inclusiva e exercício de cidadania. Já para Câmara Cascudo, que considera ser a tradição a ciência do povo[32], ser intérprete do povo é assumir uma função vicária. Na contramão da Romaria de Renato Teixeira, não é a Senhora de Aparecida, mas ele próprio, intérprete e pontífice de uma verdade unívoca, quem Ilumina a mina escura e funda o trem da NOSSA vida.
Inteligente, conservador, arrogante em seu saber mesmo quando quase sempre sob o disfarce de uma personalidade inquestinoavelmente sedutora, amante das homenagens ainda quando as ridiculariza e nega, autocentrado e convencido de sua superioridade, Câmara Cascudo é um intelectual brasileiro – espelho em que, mesmo a contragosto, reconhecemos traços de todos nós.
Deixemos portanto a ele a palavra conclusiva, numa das raras ocasiões em que, em lugar de apresentar respostas conclusivas pergunta e faz suas as perguntas de outro intelectual, no caso, o poeta simbolista português Antonio Nobre (1867-1900).
E a música? O ritmo? A dança com suas modificações, influências e metamorfoses? Dá vontade de dizer, como Antonio Nobre
Onde estão os cantores do meu país estranho?
Onde estão eles, que não m’o vêm cantar? [33]

E esperemos que a música, o ritmo e a dança, esses eternos reinventores dos nossos melhores sonhos e esperanças, nos façam decantar a república, esse país estranho que é o nosso e os tempos difíceis que nos cabe viver, porque, nos dias de incerteza, a canção popular nos diz que é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar e alegrar a cidade.


NOTAS:


[1] Margarida de Souza Neves é doutora em História, professora do Departamento de História da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq. A pesquisa sobre Luís da Câmara Cascudo que está na origem do texto apresentado no Seminário Decantando a república integra o trabalho de um sub-grupo do Projeto PRONEX sediado no Departamento de História da PUC-Rio e intitulado A questão do moderno na História da Cultura Brasileira.
[2] Gabriel CELAYA: La poesia es un arma cargada de futuro (1956). IN: Paco Ibañez en el Olympia. CD feito a partir da gravação do recital de 2/12/1969 no Olympia de Paris. Gravação EMEN – Barcelona: PDI, S.A., 1996.
[3] cfr. Ilmar Rohloff de MATTOS e Margarida de Souza NEVES: Modernos descobrimentos e descobridores do Brasil. Rio de Janeiro: PUC-Rio – Departamento de História, 1995. (Projeto Integrado de Pesquisa financiado pelo CNPq, mimeo).
[4] Dada a impossibilidade de aprofundar essa coordenada nos limites desse texto, para um maior desenvolvimento do que fica apenas enunciado, cfr. Margarida de Souza NEVES: “Da Maloca do Tietê ao Império do Mato Virgem: Mário de Andrade, roteiros e descobrimentos” IN: Sidney CHALHOUB e Leonardo Affonso de Miranda PEREIRA: A História contada. Capítulos de História Social da Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. pp. 265 a 300.
[5] Berenice CAVALCANTI; Heloisa STARLING e José EISEMBERG: Projeto Decantando a República: A cidade não mora mais em mim. Sertão, Litoral, Modernidade, Modernização. Rio de Janeiro: 2001. (Documento prévio, mimeo) p. 1.
[6] Luís da Câmara CASCUDO: Cidade do Natal. Natal: Sebo Vermelho, 1999. p. 15. (re-edição do artigo publicado em abril de 1926 na revista A Escola Doméstica [pp. 28 a 40], órgão do Grêmio Lítero Musical Auta de Souza, das alunas da Escola Doméstica de Natal).
[7] Luís da Câmara CASCUDO: Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. pp. 89 a 93.
[8] Jacques LE GOFF: “Memória”. IN: Memória – História. Enciclopédia Einaudi. Vol. 1. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 46.
[9] cfr. o encarte do CD Nação Potiguar. Gravação Scriptorin – Natal: Fundação Hélio Galvão, 1999. p. 3.
[10] Luís da Câmara CASCUDO: “Um provinciano incurável.” IN: Revista Província nº 2.  Natal: UFRN/IHGRN, 1998 (re-edição do número especial sobre Câmara Cascudo, editado em 1969). p. 5.
[11] IDEM: Seleta : organização e notas de Américo Oliveira Costa. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio/ Instituto Nacional do livro, 1972. p. 7.
[12] Diógenes da Cunha LIMA: Câmara Cascudo. Um brasileiro feliz. Rio de Janeiro: Lidador, 1998. p. 21.
[13] IDEM. Ibidem.
[14] Luís da Câmara CASCUDO: Alma Patrícia.. Mossoró: Escola Superior de Agricultura de Mossoró/Fundação Guimarães Duque, 1991. Coleção Mossoroense, série C e Joio. Natal: A Imprensa, 1924.
[15] IDEM: Histórias que o tempo leva. São Paulo: Monteiro Lobato Ed., 1924.
[16] Em 1925 Câmara Cascudo anuncia em cartas a Mario de Andrade (12 de julho e 30 de dezembro de 1925) ter escrito um livro sobre tradições, Lendas e tradições e outro, reunindo contos do sertão. Este livro foi chamado de Poética Sertaneja e desapareceu, sendo reescrito em 1939 e publicado com o título de Vaqueiros e cantadores.
[17] Sobre a amizade e a correspondência entre Câmara Cascudo e Mario de Andrade, cfr. Mário de ANDRADE: Cartas de Mario de Andrade a Luis da Camara Cascudo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica1991. (Introdução e notas de Veríssimo de Mello); Silvia Ilg BYINGTON: Pentimentos modernistas. As cores do Brasil na correspondência entre Luis da Câmara Cascudo e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: PUC-Rio – Departamento de História, 2000. (Dissertação de Mestrado, mimeo) e Edna Maria Rangel de Sá GOMES: Correspondências: leitura das cartas trocadas entre Luís da Cãmara Cascudo e Mário de Andrade. Natal: UFRN – PPgEL, 1999. (Dissertação de Mestrado, mimeo).
[18] carta de Mario de Andrade a Luís da Câmara Cascudo, 22 de julho de1926. IN Mario de ANDRADE: Cartas de Mario de Andrade a Luis da Camara Cascudo. Op. Cit. p. 66.
[19] Carta de Mario de Andrade a Manuel Bandeira , 22 de julho de 1926. IN Marcos Antonio de MORAES (org): Correspondência. Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EDUSP/IEB, 2000. p. 300.
[20] Carta de Manuel Bandeira a Mario de Andrade, 25 de agosto de 1926. IN: Marcos Antonio de MORAES (org): Op. Cit. p. 304.
[21] Luis da Câmara CASCUDO: “Não gosto de sertão verde” IN: Terra Roxa e Outras Terras. São Paulo: Ano 1 - nº 6 - 1926.
[22] carta de Mario de Andrade a Luís da Câmara Cascudo, 22 de julho de1926. IN: Op. Cit., Loc. Cit.
[23] Luís da Câmara CASCUDO: “Um provinciano incurável.” . Op. Cit. Loc. Cit.
[24] IDEM: Contos tradicionais do Brasil: Confrontos e notas. Rio de Janeiro: América ed., 1946.
[25] IDEM: Viajando o sertão. Natal: Fundação José Augusto, 1975. (2ª edição)
[26] Sobre a série de crônicas que compõem Viajando o Sertão, cfr. Mirella De Santo FARIAS: Memórias de um menino sertanejo. O sertão de Luís da Câmara Cascudo. Rio de Janeiro: PUC-Rio – Departamento de História, 2001. (Monografia de Bacharelado, mimeo) e “Luís da Câmara Cascudo: memórias de um menino sertanejo”. IN: Estudos sobre Câmara Cascudo e Afonso Arinos de Mello Franco. Rio de Janeiro: PUC-Rio – Departamento de História, 2001. Série Rasunhos de História nº 11. pp. 55 a 70.
[27] Web Page Museu da Pessoa – Gereba. http://www2.uol.com.br/mpessoa/acervo/gereba.htm
[28] Essa discografia envolve participações (Bendengó – Gereba – LP – 1973; Onde o olhar não mira – LP – 1976; Bendengó LPs – 1979 e 1981 e La Nave Va – LP, 1986) e discos de carreira, tais como Cantando com a platéia – Tom Zé e Gereba – LP – 1990; Canudos – CD 1997 e Forró da Baronesa – CD – 2000. cfr. http://www.cliquemusic.com.br.
[29] “Paixão e guerra no sertão de Canudos. Entrevista com Antônio Olavo” IN: Revista Olho da História, nº 3. http://www.ufba.br/~revistao/o3olavo.html
[30] Luís da Câmara CASCUDO: Viajando o sertão. Op. Cit. p. 48.
[31] IDEM. Literatura oral no Brasil. Rio de Janeiro/Brasília: J. Olympio/Instituto Nacional do Livro, 1978. p. 45.
[32] IDEM: Tradição, ciência do povo. Pesquisas na cultura popular do Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1971.
[33] IDEM: “Decadência da cantoria” IN: Viajando o sertão. OP. Cit. p. 48.

 

 



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