CAMARA CASCUDO, Luis da: A vaquejada nordestina e sua origem. Natal,
Fundação José Augusto, 1976, (48 pp.). Por Silvia Ilg Byington.
Verbete a ser publicado no livro SILVA, Marcos (org). Dicionário
Bibliográfico de Câmara Cascudo, no prelo. Na introdução do livro, Camara Cascudo cita o Evangelho de São João – “O que é da terra é da terra e fala da terra” – e expressa seu critério de escolha do tema da vaquejada, que, segundo ele, aproxima este estudo de Jangada, Tradições populares da pecuária nordestina, Jangadeiros, Rede de dormir, Cozinha africana no Brasil e História da alimentação no Brasil. Todos seriam “obstinadas valorizações do humilde-cotidiano.” Entretanto, não é unicamente pela perspectiva etnográfica que o assunto é abordado neste ensaio – assim como em muitos de seus trabalhos. Seu tema desdobra-se pela escrita do polígrafo: etnógrafo, sociólogo, historiador e, por fim, memorialista – “Apenas ninguém queria contar a História da Vaquejada... Este ensaio tem essa finalidade. Começa...” (p.14). O autor reconstitui, em um passado genérico, a data festiva “mais tradicional do ciclo do gado nordestino” (p.17) em seu sentido original, relacionando-a à sua funcionalidade primitiva. A festa da vaquejada era, segundo Camara Cascudo, uma exibição “de força ágil, provocadora de aplausos e criadora de fama”(p.17) dos vaqueiros, diretamente vinculada ao trabalho de divisão (Apartação) entre os fazendeiros, do gado criado solto nos campos sertanejos. Repetiam em público, nos pátios das fazendas, a técnica utilizada nas várzeas para recolher os animais ariscos que escapavam da manada e disparavam pela caatinga. São testemunhos do sentido original desta tradição o registro literário de Euclides da Cunha (Os Sertões) e o relato, verídico ou ficcional, de um vaqueiro em J. M. Cardoso de Oliveira (Dois metros e cinco). Como parte da reconstituição narrativa com que Camara Cascudo inicia o ensaio, são utilizados termos regionais das atividades pastoris, traduzidos no glossário. Retirada deste passado histórico transformado em Memória pelos caminhos da oralidade, a técnica tradicional nordestina da derrubada do boi pela cauda é trazida para o presente e pode, portanto, tornar-se objeto de estudo sistemático no viés de sua peculiaridade em relação a outras tradições próximas e influentes. O autor percorre distintos universos de referências documentais (Cf. a diversificada lista de Interlocuções) na busca do mais antigo registro da técnica sertaneja da derrubada do boi, para encontrá-lo no Novo cancioneiro, de José de Alencar, publicado no jornal O Globo, de 1874 (p.22). Não encontra, entretanto, registro da técnica na tradição pastoril de Portugal, cuja “jurisdição cultural”(p.30) no Brasil é dominante – “os usos e costumes vulgarizados no Brasil vieram de Portugal. As técnicas dos nativos não alcançariam jamais a espantosa disseminação funcional”(p.30). Assinala, em seguida, a provável origem da vaquejada pela semelhança entre esta e a também tradicional “coleada”, prática esportiva popular em alguns países da América Espanhola, rastreando e comparando a documentação sobre as técnicas pastoris da Espanha e dos países vizinhos ao Brasil com a técnica tal como praticada no Nordeste. Sua conclusão relaciona os critérios de antigüidade e permanência dos “usos e costumes” disseminados pela dominante “ação influenciadora”(p.30) dos colonizadores, conjugados ao critério de adaptabilidade às condições naturais da região, para deduzir a origem, a singularidade e a conservação da tradição: “A menção de José de Alencar para o Ceará, permite deduzir de uso bem anterior verificando-se o emprego no âmago dos sertões, refratário às modificações rurais. E se existia no Ceará, vivia no Rio Grande do Norte, Paraíba e Piauí, regiões vizinhas. Mesma raça, hábitos, mentalidade, ambiente físico, organização social e atividade econômica. A vaquejada, acredito ser de origem espanhola. Desapareceu na Espanha mas resiste nas terras d’América, entre as populações pastoris do antigo domínio colonial.” (p.31) E “a derribada pela cauda popularizou-se pelo interior do Nordeste atendendo à natureza da vegetação nas caatingas,(...) impossibilitando o espaço livre para o lançamento do laço (...) No meu sertão, derrubada no fechado era a solução comum, usual, costumeira.” (p.27). Convoca neste trecho conclusivo, o depoimento de um de seus informantes mais consultados em suas pesquisas etnográficas: Fabião das Queimadas, “velho poeta das vaquejadas no agreste do Rio Grande do Norte, negro, analfabeto, ex-escravo” (p.27). O autor conclui
o texto assinalando aquilo que é a tese do ensaio e expressa a marca
memorialista de seus estudos, a saber, a prática da vaquejada no presente
ganha sentido como uma tradição resistente,
sobrevivente e desvirtuada pela perda de sua funcionalidade em
contraste com uma tradição viva, natural e original,
localizada em um passado heróico e anônimo, o qual deixou raros fragmentos
na História, cuidadosamente recolhidos e apresentados. Contar sua História é
restituir sua Memória porque “já não há mais o gado brabo, criado solto,
largado nas pastagens sem dono. Toda a gadaria vive dentro de coordenadas
geográficas intransponíveis. Sertão retalhado pelas rodovias, fedendo a
gasolina, com manchas de óleo nas touceiras de macambirras (...)Muitas
figuras espantosas morreram pela ausência do clima de ação. Já não se fala
da tradição valorosa dos topadores invencíveis. (...) Esta paisagem hostil,
sedutora, virilizante, era o ambiente das derrubadas heróicas, anônimas e
definitivas. (p.28) Hoje é festa pública, nas cidades com publicidade e
alto-falante, fotografias e aplausos citadinos. Outrora as bromélias,
xique-xiques e cardeiros eram as únicas testemunhas das façanhas.(...)
Concorrem os jovens vaqueiros e em maioria absoluta fazendeiros moços,
homens titulados pelas Universidades (...) A Vaquejada tornou-se esporte da
aristocracia rural “(p.29). |