CÂMARA CASCUDO, Luis da : Canto do Muro. Romance de costumes. Rio de Janeiro, José Olympio, 1959. (267 pp.) - por Luiza Larangeira da Silva Mello Ementa: O livro foi escrito por Luis da Câmara Cascudo em 1957 e editado pela primeira vez em 1959. Referindo-se à obra, o autor afirma que "nenhum outro possui, como este, a totalidade emocional" (p. 266) e "é um livro de poucos meses vivido em muito mais de quarenta anos." (p. 263) O livro é composto por 25 capítulos, dentre os quais os 24 primeiros dedicam-se a uma abordagem detalhada da vida e do comportamento de alguns dos personagens que integram a fauna e a flora habitante do "canto do muro", cenário supostamente ficcional mas que se presta ao relato das observações feitas pelo autor ao longo de toda a sua vida. Cascudo posiciona-se como intermediário entre o mundo da experiência, que se realiza cotidianamente, e o mundo da erudição científica, no qual se forjam padrões, paradigmas e explicações. Mescla o conhecimento de nomes científicos de espécies animais e vegetais e explicações acerca do funcionamento orgânico de algumas delas com anotações de seu trabalho empírico. Cascudo esclarece e reafirma ao longo do livro sua metodologia na apreensão das sutilezas do comportamento das espécies: "Por mim foram vistos sem que soubessem que estavam sendo motivos de futura exploração letrada. Não tiveram tempo para disfarce(…)" (p. 2). A oposição entre o conhecimento adquirido através de instrumentos oficiais nos "laboratórios científicos" (p. 2) e aquele adquirido "na liberdade de todas as horas do dia e da noite" (p. 2) é também marca característica da obra etnográfica de Câmara Cascudo quando privilegia para o conhecimento da cultura popular "não bibliotecas, mas convivência" [Tradição ciência do povo, 1971, p. 10]. Muitos conceitos recorrentes aos seus estudos como folclorista encontram-se presentes no livro, tais como os conceitos de antigüidade, origem, primazia, autenticidade. Em movimento análogo ao que realiza em seu registro e análise das manifestações folclóricas, Cascudo traça a genealogia evolutiva e histórica das espécies animaiis a que pertencem seus personagens. Outro conceito que se faz presente ao longo de toda a obra é o de "utilidade" que, no vigésimo quinto capítulo, permitirá ao autor questionar o caráter utilitário que o avanço tecnológico impõe à vida do homem pós-moderno, afastando-o tanto da natureza quanto da moral por ele mesmo instituída. A tese central pode ser encontrada no décimo sétimo capítulo e consiste em um questionamento do autor em relação à consagrada idéia de que todos os seres que não pertencem à espécie do Homo sapiens são irracionais e agem apenas instintivamente: "E vamos indo na marcha de apagar os nomes de ‘instinto’, ‘estímulo’ e substituí-los por ‘inteligência’, ‘raciocínio’, ‘deliberação realizadora’." (p. 158) Interlocução: Literatura; Fernando Pesssoa (epígrafe); Camões (31);Afonso Arinos (65); Charles Dickens (127); Olegário Mariano (130); Nuno Marques Pereira (livro de 1728, 152, 156); Olavo Bilac (176); Tagore (241); Goethe (241); Beaumarchais (2); Nuno Marques Pereira (86); Vieira (Sermão da Sexagésima, 1655, 195); Machado de Assis (115, 137, 159); Georges Dumas (119,125); H. Rider Haggard (King Solomon’s Mine, 263); Victor-Hugo (259). Clássicos: Aristóteles (47,48); Homero (Ilíada, 241); Plínio (96); Shakespeare (44,75); Montaigne (2); Ovídio (243), Bíblia: (22,108, 202, 204, 258); Rei Salomão (Livro dos Provérbios, 183); São Francisco de Assis (Il Cantico del Sole, 213) Informantes: Hemenegildo (dono de um pomar, 21); Pai (38, 68, 153); Primo (39); oficial americano (67); Aroaldo de Azevedo ("de Aracaju", 68); "Um meu parente, caçador noturno de tatus" (97); José Carvalho (cearense, p. 146, 147); Nicácia ("cozinheira de meu pai", 185) Mario de Andrade: 68. Documentação Histórica: Frei Vicente do Salvador Gota (Almanaque de Gota, 116), Cantiga de xexéu, "Côco de roda do Nordeste" (Bambelô, 151) Biologistas, zoologistas, médicos, cientistas naturais: Curvier (22, 30); Daubenton (30); Roume de Saint-Laurance (30); Lázaro Spallazani (jesuíta, 28, 32); Marcgrave (37, 152, 158); Pall (40) Lucien Berland (48); Schwenckfled (48); Artur Neiva (tinha também trabalhos de etnografia, lingüística e História, 48); Bourvier (55); Rodolfo von Iherng (68); Perty (75); Lineu (4, 85, 137, 151); Buffon (22, 30, 43,4 49, 70, 87, 90, 97, 151, 152, 206, 207); Bangs e Penard (111); Walckenser (115); J. H. Fabre (132, 182, 183, 224, 225, 227, 228); Guilherme Piso (137), Sorokin (161); Professor Neal A. Weber (1955, 163); Mário Autori (173, 174); Alexis Carrel (era também sociólogo, 256) Físicos: Pascal (206); Bergson (238); Einstein (241) Viajantes: Ibne Batuta (53); Marco Polo (53); Vasco da Gama (53); Cristóvão Colombo (53) Fichamento: Nota do Autor Epígrafe (p. 2): L’auteur , vêtu modestement et courbé, presantant sa pièce au lecteur. BEAUMARCHAIS, Lettre Moderée sur la chute et la critique du Barbier de Seville, 1775. O autor classifica o livro como "romance de costumes", que aliás é seu subtítulo, como forma de aproximar sua obra fixional da realidade: "Quase todos os episódios contidos nesse romance de costumes foram observados diretamente e qualquer semelhança não é mera coicidência." (p. 2) Já aí anuncia a perspectiva metodológica que utilizou para apreender a matéria-prima que alimentou a obra. Os costumes se manifestam cotidianamente, para narrá-los faz-se necessário utilizar um método empírico, de observação: "Por mim foram vistos sem que soubessem que estavam sendo objeto de futura exploração letrada." (p. 2) Oposição entre observação direta e as metodologias científicas usuais que permitiriam dissimulação comportamental por parte do objeto observado e, conseqüentemente, perda de autenticidade: "(…) portaram-se aqui diferentemente do que fizeram nos laboratórios científicos, nas horas de experimentação grave" (p. 2) "Não tiveram tempo para disfarce e transformação parcial ou total nos hábitos diúrnos e noturnos." (p. 2) Confere legitimidade ao livro através da virtuosidade de suas intenções: Foram eles os originais aos quais me reporto e dou fé." (p. 2) Datado da seguinte forma: "Natal, dezembro de 1957. Luis da Camara Cascudo [manuscrito] Canto do Muro e seus moradores (pp. 3 a 9) Epígrafe (p. 3): "Irmãos, volvamos para a Natureza! Civilizados, para trás! Voltemos…" Humberto de Campos Apresentação dos personagens que pertencem a espécies animais e vegetais e do cenário no qual se desenrolarão os episódios narrados: o "canto do muro". Natureza como objeto de uma sabedoria popular: "(…) A Esperança, um locustídeo que tendo a boca esverdeada dá felicidade e a tendo negra é anúncio de azar (…)" (p. 7) Mas a natureza é também apresentada como objeto de "exploração letrada" (p. 2). Cascudo se coloca como detentor de ambas as "ciências", tanto a popular quanto a erudita: " Mamoeiro, sapotizeiro e goiabeira, estão registrados nos livros graves como Carica papaya, L., mas o fruto lembrando uma grande mama conservou o aumentativo." (p. 4) O mundo social por vezes é marcado por categorias das sociedades humanas, tais como hierarquia, propriedade, legislação etc.: "Os xexéus possuem três ninhos e julgam propriedade quanto seus olhos alcancem" (p. 6) "E as vespas fulminantes, zumbindo como se anunciassem a hierarquia que está honrando o canto do muro com sua presença augustal" (p. 7) "De todas as espécies é a única que não goza das licenças legais e férias remuneradas. Não há leis regulando o esforço perpétuo das saúvas, vassalas de Ata." (p. 7) Caçada Noturna (pp. 10 a 20) Epígrafe (p. 10): Night has a thousands eyes… Narra o comportamento dos animais de hábitos noturnos. Alusões a uma ciência natural do povo e à natureza como objeto da superstição popular: "Toda a gente sabe que a plumagem das corujas é macia e por isso seu vôo é silencioso." (p. 10) "(…) os cuprimulgídeos do gênero Nyctibius, figurando em lendas e superstições respeitáveis e seculares." (p. 18) O mundo de Quiró (pp.21 a 34) Epígrafe (p. 21): "- Faça-me o favor de dizer: para que Nosso Senhor fez o morcego?" Pensamento e frase comum do Sr. Hemenegildo, dono de um pomar. A partie deste capítulo, Cascudo passa a fazer um análise comportamental e fisiológica das espécies animais que toma como personagens. Relata sua forma de alimentação, reprodução, relações intra e inter-espécies, etc. Presença dos conceitos de antigüidade, anterioridade, origem e permanência. Cascudo traça a genealogia evolutiva do morcego: "Contemporâneo ao Eoceno, milhões de anos anterior ao homem" (p. 22). Morcego ausênte das manifestações da tradição popular: "Não tem, que eu saiba ou tenha lido, lenda ou mito na memória popular." (p. 23) Desmistificação de idéias do senso comum em relação ao morcego: "O tabu da harmonia entre os morcegos merece solução de continuidade." (p. 24) "Que Quiró respeite a propriedade privada de outro morcego e este a dele, é balela. "(p. 24) Surge o conceito de utilidade de forma pejorativa. O morcego sendo mais antigo que o homem não existe para lhe ser útil: "A base do útil é o interesse da vantagem auferida. O elemento útil pode ser dispensado do autoproveito, de ser útil para si mesmo desde que o seja para nós. A doutrina da servidão animal, fundada na própria doação divina, encarece demasiado a superioridade do Homo Faber, fazendo-o apenas usufrutuário do esforço inconsciente sem a retribuição que o direito natural obrigaria." (p. 26) Proezas de Gô (p. 35 a 45) Epígrafe (p. 35): "O rato decúmano incomodou muito Napoleão na Ilha de Santa Helena." F. Martin e Rebeau Dedicatória (p. 35): Ao JOSÉ PIRES DE OLIVEIRA, companheiro na obstinação da pesquisa e paciência da observação. Traça uma certa genealogia histórica desta espécie de rato: "Gô invadiu a Europa no século XVIII vindo da Pérsia. Atravessou a Rússia, Áustria, Alemanha…" (p. 36) A convivência funda a autoridade de Cascudo como pesquisador: "Assisti na granja de meu pai um combate singular entre Gô e uma galinha de pintos" (p. 38) Novamente a questão da utilidade: "Acompanha o homem não para servi-lo, como o cão , o cavalo, o boi, mas para servir-se dele, de sua indústria cujos produtos lhe agradam excessivamente." (p. 40) O Bacurau-mede-légua (pp. 46 a 51) Epígrafe (p. 46): "- É dizendo e o Bacurau escrevendo"… Imagem afirmativa de origem misteriosa. Antigüidade, origem e genealogia conferem ao bacurau uma certa superioridade em relação ao Homem: "Passava, pesado e lento (…) o homem de Heidelberg e o bacurau já caçava suas predileções ao escurecer a noite de 500 mil anos." (p. 47) A coruja na tradição popular: "Daí virá a frase sertaneja do Nordeste do Brasil: - É dizendo e o bacurau escrevendo" (p. 50) A estória de Vênia (pp. 52 a 61) Origem e genealogia histórica: Vênia seria originária da África Ocidental e teria vindo para o Brasil no século XVI nos navios negreiros: "Que fôra Vênia quinhentista e seiscentista fazer a bordo dos brigues e bergantins carregados da gente escrava que vinha para o Brasil, é que não posso deduzir, se não aceitar o impulso da verificação geográfica como tiveram Ibne Batuta, Marco Polo, Vasco da Gama e Cristóvão Colombo." (p. 53) Crença em uma linguagem animal: "Será linguagem? Estou convencido da comunicação animal através de cantos gestos, toques de antenas. O Homo sapiens deseja muito defender o seu monopólio mas os animais um dia responderão às perguntas feitas há tanto tempo. Não responderão ao perguntarem porque dispensarão prudentemente maior convívio com a raça humana, mas permitirão ao observador a visão dos elementos positivos de que se entendem perfeita e naturalmente." (p. 58) Três personagens em busca de autor (pp. 62 a 74) Registra o comportamento da galinha carijó, do guaxinim e do urubu. A galinha também surge como personagem dos ditados populares: " ‘-galinha pedrês não a comas nem a dês.’" (p. 65) Utilidade: "(…) profissionalmente inútil, carne e couro para nada servem." (p. 66) O nome vulgar, urubu, é de origem tupi: "Os indígenas de fala tupi é que o chamam pela forma que sabemos, Urubu. Batista Caetano ensinou-me que Urubu é contração possível de y-nê-bur, o que exala fétido." Urubu na superstição: "Havia em quase toda América Latina legislação que defendia os urubus da morte para a distração do homem ou experiência de sua arma. Para isto criou-se mesmo uma lenda assombrosa de que a espingarda ficaria inutilizada para sempre. Acreditei muitos anos, menino, nesta proibição mas, rapaz, afoitei-me às experiências repetidas sem que sofresse dano a minha saudosa Remington de confiança." (p. 74) Titius bate-se em duelo (pp. 75 a 84) Epígrafe (p. 75) "- Frailty, thy name is woman!" Shakespeare, Hamelet, Prince of Denmark. Antigüidade, anterioridade e "superioridade" da primazia: "Foi o primeiro precursor da vida animal sobre a Terra." (p. 76) Ser universal, o escorpião, manifesta-se através de diferentes nomes no âmbito regional: "No Norte o chamam lacrau, rabo-torto no Maranhão, e no Sul, escorpião." (p. 77) Cascudo procura conferir grande precisão à sua metodologia de pesquisa fundamentada na convivência, datando os episódios narrados: "Recordo minha aproximação em dezembro de 1944, com ele. Calçando um chinela tive a exata impressão de ter calçado uma brasa viva." (p. 78) O Canário da Goiabeira (pp. 85 a 93)
"Afirmar-se que não há relação entre o canto e o visível sentimento da ave tenora, e que canta mecânica, maquinal, insensivelmente, não me foi possível aceitar e compreender, resignado às conclusões dos laboratórios experimentais ou pesquisas de campo." (p.87) "Dentro de um galpão de laboratório, presos seja em um ambiente cientificamente imitado e perfeito ao original, todos os animais modificam a mentalidade." (p. 88) Tese da racionalidade animal: "O mais terrível é que estou convencido de não haver animais ‘irracionais’, isto é, desprovidos de raciocínio e espero que existam homens e mulheres neste mundo que compartilhem desta convicção." (p. 88) Romance de Coruja (pp. 94 a 102) Epígrafe (p. 94): "Ave noturna, agoureira, Não me apavora teu canto" Lorival Açucena Desmistificações de idéias formadas pelo senso comum: "Bem desejaria ela explicar quanto é mentirosa a lenda obstinada que a diz ver de noite quando não enxerga de dia, deslumbrada pela claridade cegante do sol. Nem tanto. Verdade é que não pode ver sem luz, sem alguma luz." (p. 94) Mito universal a respeito da coruja que atravessa tempos e espaços: "Em qualquer país do mundo e tempo da história a coruja é mensageira da morte infalível." (p. 95) O conhecimento de Cascudo das superstisções que envolvem a coruja se fundamenta na convivência: "Morávamos numa chácara e numa noite, muito doente meu Pai, a coruja começou no seu ululado arrepiante. Meu pai fez um sinal a um dos criados. Um tiro estrondou e o servo voltou com a corujinha morta, pintada de sangue, olhos imensos, abertos, sem saber por que morrera. Meu Pai disse a frase consagrada pelo uso: - ‘Vá agourar outro…’". (p. 96) A ideia de que a coruja é agoureira atravessa as diversas classes sociais: "Todas as pessoas que nos visitavam, ilustres e humildes, desde o Governador do Estado ao vendedor de carvão, surpreendiam-se com a coruja, aconselhando sua imediata libertação." (p. 97) Conto europeu da raposa e da coruja (p. 100) e ditado popular cearense: "Um ditado do Ceará, recolhido por Leonardo Mota: ‘Coruja é quem gaba o toco.’" Triste fim de Raca (pp.103 a 114) Epígrafe (p. 103): "Adjuro-te, serpens antique"… RITUALE ROMANUM. Linguagem, comunicação animal, também através do odor no caso da cobra: "Nenhum outro animal entenderia e nem mesmo perceberia a linguagem invisível e formal do recado pelo ar, moléculas apenas sensíveis, em sua delicadeza poderosa, ao sistema nervoso dos machos" (p. 105). "(…) dedução, método perigoso quando improvisação." (p. 107) De como Licosa perdeu uma pata e o mais que sucedeu (pp. 115 a 126) Epígrafe (p. 115): "… e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões se Buffon tivesse nascido gavião"… Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas. O valor da Antigüidade: "Boileaueau mandou que os ventos se calassem porque ia falar de Luis XIV. Mando eu que silenciem os três, Boileau, ventos, Luís XIV. Quem era, francamente o Rei SOL? Filho de um ramo colateral dos Valois, Bourbons pobres de glórias velhas. Licosa já existia nos terrenos do Eoceno e Mioceno do terciário. Milhões de anos antes de qualquer Luís XIV. Se antigüidade é posto no frascado genealógico, Licosa é legitimamente anterior a todos os Almanaques de Gota. O altitudo!" (p. 116) Universalidade: Cascudo recupera o mito grego de Atena e Aracne que explica o surgimento da aranha. (p. 116) Utilidade manipulando os interesses da pesquisa científica: "O sentido do Útil explica a curiosidade ‘desinteressada’ da ciência humana. Foi possível a desintegração atômica, mas ninguém explica (…) porque Licosa, morando sozinha vai procurar, ansiosa e determinadamente, outra aranha e a encontrará com toda certeza." (p. 119). Gesta de Grilo (pp. 127 a 136) Epígrafe (p. 127): "Reparai que o grilo voltou a cantar!" Charles Dickens. Combate à idéia da irracionalidade animal: "(…) comunicação dos pensamentos mais complexos ou simplesmente perigosos." (p. 130) Coloca a sua opinião (fundamentada na convivência) no mesmo nível da dos especialistas no assunto: "O grilo campestre tem dois cantos, segundo os mestres, e, segundo o meu ouvido, três." (p. 130) Animais nos provérbios populares tais como "ouvir como um grilo" e a cigarra é "dura de ouças" (p. 130) Utilidade: "Quando coincide a escolha do grilo com a utilidade para o homem nasce-lhe o título de invasor maléfico." (p. 133) "O senso do utilitarismo é básico nos animais" (p. 134) Antigüidade e genealogia do grilo (p. 133) Simples vida de cobrinha-coral (pp.127 a 136) Xexéus latinistas e Tapiucabas (pp. 143 a 150) Liberdade (autenticidade) x laboratório (dissimulação): "Naturalmente os xexéus da mangueira, em liberdade, distam de hábitos e maneiras daqueles que estão no cativeiro imerecido." (p. 146) Conto popular sobre o xexéu (p. 146, quarto parágrafo) Lavadeira e Bem-te-vi (pp. 151 a 157) Epígrafe (p. 151): Bem-te-vi derrubou Gameleira no chão! Derrubou, derrubou, Gameleira no chão! Côco de roda do Nordeste (Bambelô) Linguagem e comunicação do pássaro através do canto. O canto do bem-te-vi não é vazio de intensionalidade: "O canto, por si só, jamais deixa de constituir uma mensagem profundamente intesional." (p. 155) Reino de Ata (pp. 158 a 184) Epígrafe (p. 158): As formigas são tão numerosas aqui, que são chamadas pelos portugeses, Rey do Brasil. Marcgrave (1644). A questão da racionalidade animal: "E vamos indo na marcha de apagar os nomes ‘instinto’, ‘estímulo’ e substituí-los por ‘inteligência’, ‘raciocínio’, ‘deliberação realizadora’. Creio que não haverá maior vitória que esta confissão do Rei da Criação do alto dos laboratórios e arranha-céus para uma formiga saúva no fundo da panela do seu formigueiro." (p. 158) "O instinto somente se prova pelas reações às provocações da rotina. (…) Para a cristalização das experiências no tempo é indispensável a repetição dos motivos formadores do movimento solucionador, por sua vez soma das provações ateriores. Diante de novo motivo, apresentado pela primeira vez, o instinto não têm solução alguma. Se a reiteração dos fatos determina uma atitude defensiva em relação aos elementos recentes é que existe uma mecânica de raciocínio. Um animal não pisa espontaneamente brasas vivas. Forçado a atravessar um braseiro cada um age de acordo com a possibilidade que são as soluções dadas pela inteligência e não pelo instinto, vocábulo vago e bonito para explicar comodamente quando outra explicação falece." (p. 175) "Instinto não improvisa."(p. 176) Utilidade: "Graças às saúvas muita gente está vivendo melhor." (p. 159) "O homem não pode cativá-la na domesticidade aproveitável porque a saúva para nada presta." (p. 168) Política: "A raínha Ata, como o Partido Comunista, determina reações benéficas das entidades ameaçadas." (p. 159) Traça a genealogia histórica das saúvas e reaparece o tema da antigüidade. Fu ou o mistério da simpatia (pp. 185 a 194) Epígrafe (p. 185): "O pecado do sapo é a feiúra." Sentença da velha Nicácia, cozinheira de meu Pai. Utilidade: "(…) a base da simpatia é a utilidade." (p.190) Desmistifica idéias do senso comum: "A tradição do sapo venenoso merecia pequena divulgação no tocante à sua periculosidade." (p. 191) A idéia de primazia está novamente presente (p. 193). Canção da vida breve (pp. 195 a 201) Epígrafe (p. 195) "… cousas do mundo, humas que vão, outras que vem, outras que atravessam, e todas passão." Padre Antônio Vieira, Sermão da Sexagésima, 1655. Utilidade: "Sem eles várias espécies pereceriam e na falta destas uma cadeia inteira de utilidades relativas ao homem deixaria de existir." (p. 199) De re aliena (pp. 202 a 212) Epígrafe: "Sereis como Deuses!…" Princípio de conversa da Serpente com Eva Traça a genealogia e a evolução das aves e seu vôo. "A maior alegria humana é o encontro de sua própria explicação para o fenômeno, da sua e não da explicação oficial, possivelmente certa, verificada inabalável." (p. 206) Irmã Agua (pp. 213 a 220) Epígrafe (p. 213): "Laudauto sii mio signore per suora acqua, la quale è molto utile et humilde et pretiosa, et casta." São Francisco, Il Cantico del Sole. Ka ou a inutilidade virtuosa (pp.221 a 230) A convivência não basta para que se produza conhecimento, a erudição também se faz necessária: "Nunca lhe dei importância pela facilidade com que o via na chácara onde me criei (…) As cousas vistas diariamente perdem insensivelmente o valor." (p. 222) Utilidade: o escaravelho contribui para a adubação da terra, "única benemerecência da família KA" (p. 229), mas as pequenas proporções não trazem melhora real: é a "inutilidade virtuosa" (p. 230) A raposa e o avião (pp. 231 a234) Namoro de pombos (pp. 235 a234) Magestati naturae par ingenium (pp. 238 a 262) Epígrafe (p. 238): "L’intelligence est caractérisée par une incompréhension naturele de la vie." Henri Bergson, Évolution Créatice. "Todas as virtudes sustentadoras do Homem estão desaparecendo, confiança, fé, esperança, as deusas da amizade, as alegrias sem interesse, a paixão artística, o sonho boêmio, as vidas vão perdendo a força de contágio no sentido do do Belo e do Divino." (p. 239) "Todos os livros vulgarizadores da Ciência pregam o dogma da vida material que será feliz porque será farta" (p. 239) "Mas em 1900 morríamos com 49 e agora vamos aos 61 anos. Um doente de tifo escapava a cada 500. Agora morre um em 4.000. A tuberculose é curável. O impaudismo deixou de ser a morte inevitável. A raiva dominou-se. As cobras matam quando não há contraveneno, a injeção salvadora. Já fazemos imunização. Operações no cérebro, no coração, nos nervos. E os milagres dos complexos vitaminosos? Mas são cousas do corpo, da matéria, do que está condenado a perecer num forno de incineração ou debaixo da terra." (p. 241) "O evidente é que somos bem pouco, muito pouco felizes com a espantosa aparelhagem possuída para fazer-nos conhecer terra, céu e mar. (…) Vivemos sob o signo da Angústia." (p. 244) "Não há nada mais antieconômico do que a Moral. A Economia sob a égide da Moral exige soluções pessoais de altruísmo, renúncia e tenacidade que desanimam a quase totalidade humana. Com o rodar do Tempo foi sendo possível ao Utilitarismo uma escala moral, uma divisão prática, usual e comum: moral econômico-financeira, moral política, moral social, moral doméstica, moral religiosa. Partem todas do mesmo divino núcleo mas se vão ampliando concentricamente, enfraquecendo-se na proporção em que o volume cresce e tanto maior a distância do núcleo, maior a fragilidade da orla final. A Natureza retoma lentamente, na quarta dimensão, as áreas que perdeu para invisível Moral." (p. 250) "Esta libertação do Divino é apenas a doação do Homem ao livre jogo das forças obscuras da Natureza."(p. 251) "O produto do utilitarismo econômico total é a máquina ou o monstro." (p. 255) Depoimento (pp. 263 a 266) Epígrafe (p. 263): Now that this book is printed, and about to be given to the world, a sense of its short comings, both in style and contents, weighs very heavily. H. Rider Haggard, King Solomon’s Mines. Autodefine-se como: "professor provinciano" (p. 263) "CANTO DO MURO, entretanto, é um livro de poucos meses vivido em muito mais de quarenta anos." (p. 263) Cascudo diz que pesquisa por "curiosidade" (p. 264) Data e localiza vários dos episódios narrados. Diz estar escrevendo Da Etnografia Geral, pesquisas e notas do curso da Faculdade de Filosofia de Natal. Escreve o livro preocupado com o filho doente: "Num clima de inquietação e susto Canto do Muro se ergueu, página à página." "Nenhum outro possui, como este, a totalidade emocional. Por isso, relativamente aos já publicados, no es que fuera mejor ni peor – es otra cosa! 377, Av. Junqueira Aires. NATAL. L. da C. C." Observações: As epígrafes estão distribuídas por todo o livro, abrindo quese todos os capítulos. As epígrafes dos capítulos foram transcritas no fichamento. As que vêm a seguir abrem o livro de uma maneira geral: Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. FERNANDO PESSSOA Il ne faut jamais dire aux gens: "Écoutez um bon mot, oyez une merveille." Savez-vous si les ecoutants En feront une estime à votre pareille? LA FONTAINE Dedicatória: "A Dahlia Fernando Luis e Ana Maria meus amores. O livro não traz bibliografia, mas informantes, sobretudo cientistas naturais, são citados ao longo dos capítulos. Muitas vezes se refere aos ser humano como "Rei da Criação" ( pp. 28, 158) Alusões à vida política-econômica: "Armadilhas são tão inoperantes como as formas repressoras e legais da Alta do custo de vida no país." (p. 68) "A raínha Ata, como o Partido Comunista, determina reações benéficas das entidades ameaçadas." (p. 159) Cascudo se autodefine como "auto-didata" (p. 90), "amador sem método" (p. 175), "professor provinciano" (p. 263). O uso de maiúsculas para afirmar alguns conceitos básicos com que opera em suas obras surge significativamente apenas no último capítulo (Pai, Moral, Natureza, Utilitarismo, Divino, Homem, Fé, Civilização, Humanidade, Vida, Bem, Mal, Ciência, Caridade etc.). por vezes, no entanto, estes conceitos aparecem também com minúsculas. Atribui o mesmo valor heurístico tanto à especialistas, eruditos e pensadores famosos quanto a personagens de seu cotidiano como "Sr. Hemenegildo, dono de um pomar." (p. 21) e "a velha Zabelê analfabeta que, afora o Lunário Perpétuo, conhece apenas um livro de rezas e o rosário de Nossa Senhora." (p. 251) A decepção em relação ao ser humano por vezes surge de forma irônica: "O Homo sapiens que já desintegrou o átomo, aplicado para finalidades filantrópicas em Nagasaki e Hiroshima, 1945 anos depois do nascimento de Jesus Cristo, não conseguiu apoderar-se de certos segredos funcionais de Quiró e daí submetê-lo aos suplícios da pesquisa laboratorial." (p. 29) Tese central: A tese central é a da crença na existência de uma inteligência, uma racionalidade animal que se manifesta sobretudo na capacidade dos animais de improvisarem em situações inéditas e de estabelecerem entre si alguma forma de comunicação. O reconhecimento pelo homem da inteligência dos animais que não pertencem à sua própria espécie põe em xeque a sua superioridade: "Estou a cada ano sendo tomado pela certeza, ainda indecisa mas envolvente, da comunicabilidade animal através de sinais sonoros. (…) O mais terrível é que estou convencido de não haver animais ‘irracionais’, isto é, desprovidos de raciocínio e espero que existam homens e mulheres neste mundo que compartilhem desta convicção." (p. 88) "E vamos indo na marcha de apagar os nomes ‘instinto’, ‘estímulo’ e substituí-los por ‘inteligência’, ‘raciocínio’, ‘deliberação realizadora’. Creio que não haverá maior vitória que esta confissão do Rei da Criação do alto dos laboratórios e arranha-céus para uma formiga saúva no fundo da panela do seu formigueiro." (p. 158) "O instinto somente se prova pelas reações às provocações da rotina. (…) Para a cristalização das experiências no tempo é indispensável a repetição dos motivos formadores do movimento solucionador, por sua vez soma das provações ateriores. Diante de novo motivo, apresentado pela primeira vez, o instinto não têm solução alguma. Se a reiteração dos fatos determina uma atitude defensiva em relação aos elementos recentes é que existe uma mecânica de raciocínio. Um animal não pisa espontaneamente brasas vivas. Forçado a atravessar um braseiro cada um age de acordo com a possibilidade que são as soluções dadas pela inteligência e não pelo instinto, vocábulo vago e bonito para explicar comodamente quando outra explicação falece." (p. 175) "Instinto não improvisa."(p. 176) Outra idéia importante que se apresenta na obra complementando a tese principal e que estrutura metodologicamente o trabalho de Cascudo concerne à crença de que os animais alteram seu comportamento nos laboraórios científicos. Apenas a convivência com o animal em seu habitat natural permitiria a apreensão do seu autêntico modo de vida: " Se alguns dos meus personagens, fixados na liberdade de todas as horas do dia e da noite, portaram-se aqui diferentemente do que fizeram nos laboratórios científicos, nas horas de experimentação grave (…) Por mim foram vistos sem que soubessem que estavam sendo motivos de futura exploração letrada. Não tiveram tempo para disfarce e transformação parcial ou total nos hábitos diúrnos e noturnos." (p. 2) "Dentro de um galpão de laboratório, presos seja em um ambiente cientificamente imitado e perfeito ao original, todos os animais modificam a mentalidade." (p. 88) Outra idéia importante que toma forma mais delineada no vigésimo quinto capítulo ("Magestati naturae par ingenium") é a de que, a despeito das inúmeras conquistas e avanços tecnológicos que fornencem ao homem benefícios materiais, a vida da espécie homo sapiens esta mais e mais carente de felicidade. As conquistas da ciência, os progressos técnicos, o acelerado processo de urbanização e sobretudo de civilização teriam imprimido à vida e às mentalidades da espécie humana um materialismo e um utilitarismo exacerbados que levariam o homem a se afastar por um lado da natureza e por outro da moral. Ao se afastar da natureza o homem posiciona-se além de um equilíbrio que lhe poderia garantir segurança e estabilidade. Para evitá-lo cria ele próprio a moral (a moral está ausente nas relações das demais espécies de seres vivos), cujo o núcleo é a religião, entendida como fé e espiritualidade. Consumido pelo extremo materialismo da modernidade, o homem despoja-se, a cada dia, de seus princípios morais, de sua fé, do espírito poético que poderia alimentar a sua vida e torna-se cada vez mais infeliz. "Todas as virtudes sustentadoras do Homem estão desaparecendo, confiança, fé, esperança, as deusas da amizade, as alegrias sem interesse, a paixão artística, o sonho boêmio, as vidas vão perdendo a força de contágio no sentido do Belo e do Divino." (p. 239) "Todos os livros vulgarizadores da Ciência pregam o dogma da vida material que será feliz porque será farta" (p. 239) "Mas em 1900 morríamos com 49 e agora vamos aos 61 anos. Um doente de tifo escapava a cada 500. Agora morre um em 4.000. A tuberculose é curável. O impaludismo deixou de ser a morte inevitável. A raiva dominou-se. As cobras matam quando não há contraneneno, a injeção salvadora. Já fazemos imunização. Operações no cérebro, no coração, nos nervos. E os milagres dos complexos vitaminosos? Mas são cousas do corpo, da matéria, do que está condenado a perecer num forno de incineração ou debaixo da terra." (p. 241) "O evidente é que somos bem pouco, muito pouco felizes com a espantosa aparelhagem possuída para fazer-nos conhecer terra, céu e mar. (…) Vivemos sob o signo da Angústia." (p. 244) "Não há nada mais antieconômico do que a Moral. A Economia sob a égide da Moral exige soluções pessoais de altruísmo, renúncia e tenacidade que desanimam a quase totalidade humana. Com o rodar do Tempo foi sendo possível ao Utilitarismo uma escala moral, uma divisão prática, usual e comum: moral econômico-financeira, moral política, moral social, moral doméstica, moral religiosa. Partem todas do mesmo divino núcleo mas se vão ampliando concentricamente, enfraquecendo-se na proporção em que o volume cresce e tanto maior a distância do núcleo, maior a fragilidade da orla final. A Natureza retoma lentamente, na quarta dimensão, as áreas que perdeu para invisível Moral." (p. 250) "Esta libertação do Divino é apenas a doação do Homem ao livre jogo das forças obscuras da Natureza."(p. 251) "O produto do utilitarismo econômico total é a máquina ou o monstro." (p. 255) |