CASCUDO, Luís da Câmara: História da Alimentação no Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1983; por Luiza Larangeira da Silva Mello

Ementa:

História da Alimentação no Brasil, cuja primeira edição data de 1983, foi escrito entre 1962 e 1963, a partir de uma encomenda da Sociedade de Estudos Históricos D. Pedro II, por intermédio de Assis Chateaubriand. No entanto, Luis da Camara Cascudo projeta, desde 1943, escrever um livro que abordasse "assunto que vivia esparso e diluído em mil livros" (p. 15).

A obra consta de dois volumes. O primeiro – que por ora é o que nos interessa aqui – contém em três grandes partes, subdivididas em 11 capítulos, a primeira; 6 capítulos, a segunda; 8 capítulos a terceira e mais um adendo que abriga três divisões. As partes entitulam-se, respectivamente, Cardápio Indígena, Dieta Africana e Ementa portuguesa, uma vez que neste volume Cascudo propõe-se a fazer uma etnografia das origens – novamente a questão das origens, tão recorrente ao pensamento de Cascudo – da cozinha brasileira, da qual tratará no segundo volume da obra.

A marca etnográfica, aliás, é uma das mais significativas características do livro. O olhar de etnógrafo viajante do autor, sempre "vigilante na pergunta e no registo" (p.15), esteve constantemente atento para "investigar a alimentação popular em sua normalidade". Normalidade muitas vezes obtida pela convivência do pesquisador com seu objeto. "Não bibliotecas, mas convivência", já dissera Cascudo [Tradição ciência do povo, 1971, p. 10].

Essa "tentativa sociológica da alimentação na base histórica e etnográfica, correndo quase quinhentos anos funcionais" (p. 18) estrutura-se a partir do mito da missigenação das três raças. Na perspectiva do autor, o indígena americano contribui para formação alimentar brasileira com "constâncias e permanências" (p. 17). O negro, contribui de forma bem menos intensa em função do processo histórico de aculturação, em que se perdem muitos dos alimentos originais de sua culinária. O português é, finalmente, o introdutor da técnica e da sofisticação do paladar sobre os elementos indígena e africano.

Para fazer a etnografia da culinária destes três povos, Cascudo se vê forçado, todavia, a recorrer às "bibliotecas". Ainda que para descrever a dieta dos escravos negros recorra aos testemunhos de um ex-senhor de escravos e dois ex-escravos, a maior parte das informações que o autor manipula são extraídas dos cronitas coloniais e dos viajantes europeus do século XIX.

A tese central do livro parece girar em torno do conflito entre tradição e progresso. A tradição alimentar de um povo preserva a autenticidade do paladar próprio daquele povo contra o qual se impõem os progressos técnico-científicos com sua doutrina da nutrição ideal. Para Cascudo, quando o Homem moderno abandona seus costumes alimentares por uma dieta com base nos nutrientes necessários a uma alimentação equilibrada, ele retorna ao estado primitivo de natureza no qual os seres humanos, como os outros animais, se alimentavam apenas para satisfazer suas necessidades nutricionais, não tendo constiuído ainda uma cultura e, portanto, uma tradição alimentar.

Fichamento

Volume 1: "Cardápio Indígena, Dieta Africana, Ementa Portuguesa (Pesquisas e notas)"

Epígrafes:

"Parmi le rappor qui rattachent l’homme à un certain milie, l’un des plus tenaces est celui qui apparaîat em étudiant les moyen des nourritures; le vêtemen, l’armement sont beaucop plus sujets à se modifier sous l’influence du commerce que le régime alimentaire par lequel, empiriquement, suivant les climats où ils vivent, les differents groupes subviennentaux nécessités de l’organisme. Il existe à cet effet une remarquable diversité de de combinations: Bédouins ou Fellah riverains de la Méditerranée, Européen du Centre ou du Nord, Chinois, Japonais ou Eskimau, chaqun a réalisé, avec les aliment fournis par le milieu, accrus de ce qu’il a pu y joindre, un type de subsistence qui est entre désormais dans le tempérament, s’est fortifié par les habitudes."

P. VIDAL DE LA BLACHE.

Alimentação determinada pela geografia. Universal / regional.

"La destinée des nations dépend de la manière dont elles se nourrissent."

BRILLAT-SAVARIN.

"Par excellence, nous sommes des puissants agents géographiques parce que nous sommes des "êtres mangeants."

JEAN BRUNHES E CAMILLE VALLAUX.

Alimentação determinada pela geografia.

"El buen alimento cria entendimento."

"Papagaio não comeu?

Morreu!"

Omnis labor hominis in ore eius:

Eclesiastes, VI, 7.

"A nossa cozinha nacional tem primores que merecem ser cantados em todas as línguas."

Dr. L. PEREIRA BARRETO.

"Rien est aussi difficile à observer que les objets au milieu desquels on vit tous les jours."

  1. MAURIZIO.

Ciência = biblioteca e convivência.

.

"L’antiquité, on l’a dit, est chose nouvelle."

SAINT-BEUVE.

Origem. Folclore é permanência.

.

"Baste decir aqui que el arte de la cocina y la gastronomia eran considerados punto menos que santos"

JUAN VALERA (Notas a Dafnis y Cloe)

.

"Proveo que en el transcurso de muy pocas generaciones el arte de comer habrá sido enteramente substituido por la ciencia de nutrirse."

JÚLIO CAMBA

Tradição x modernidade/progresso (melancolia).

"Las materias deben tratarse conforme a las necessidades del tiempo."

BALMES

"Acharás na opulenta natureza

Sempre com mimo preparada a mesa."

SANTA RITA DURÃO, Caramuru, VII, XXXI

  • Hors d’oeuvres

Epígrafe:

"e portanto, senhor, do que ey de falar

começo e diguo."

PERO VAZ DE CAMINHA

  • "Em todas as pesquisas nunca esqueci de investigar sobre a alimentação popular em sua normalidade.(…) Sertão e praia, cidade e vila, pelo Nordeste, Sul, viajando fora do Brasil, estava vigilante na pergunta e no registro." (15)

Cascudo etnógrafo, Cascudo viajante; "curiosidade infatigável" (15) idéia de vigilância. Aqui aparece tanto o I have always been there como o I have been there.

  • Projeta o livro em 1943: "assunto que vivia esparso e diluído em mil livros" (15)
  • "Conheci ex-escravos e com eles privei. Fui advogado de um grande senhor de escravaria, inesgotável nas recordações." (15)

Convivência. Cascudo meio da ladeira (seus informantes são tanto a elite quanto o povo)

  • "Minha mãe, minhas tias, senhoras de sertão do oeste, fiés às noemas do outro tempo, suportaram minha curiosidade infatigável." (15)

Sertão, lugar da tradição.

  • "Andei uma temporada tentando Josué de Castro, em conversa e carta, para um volume comum e bilingüe. Ele no idioma da nutrição e eu na fala etnigráfica. O Anjo da Guarda de Josué afastou-o da tentação diabólica. Não daria certo. Josué pesquisava a fome e eu a comida. Interessavam-lhe os carentes e eu os alimentados (…)" (16)

Josué de Castro.

  • Em 1962, é convidado por Assis Chateaubriand a escrever sobre algum aspecto da história do Brasil para a Sociedade de Estudos Históricos D. Perdro II ( já tinha escrito Jangada,1957 e Rede de Dormir, 1959). Cascudo sugere escrever sobre a alimentação. Sua proposta é aceita.
  • O que é o livro?

"Não havia de ser relatório da gastronomia brasileira nem coleção de receitas históricas, com intercorrência anedotarial. Uma tentativa sociológica da alimentação na base histórica e etnográfica, correndo quase quinhentos anos funcionais." (p. 16)

"Toda a finalidade dessa História da Alimentação no Brasil é no plano da notícia, da comunicação, do entendimento." (p. 18)

  • Apresenta os interlocutores que vai utilizar para tratar do "cardápio indígena", da "dieta africana" e da "ementa portuguesa".

"Neste primeiro volume exponho quanto puder obter sobre o cardápio indígena, a dieta africana, especialmente d’África Ocidental, e a ementa portuguesa, insistindo com preferência ao século XVI. Foram as fontes da cozinha brasileira, que será estudada no outro tomo." (p. 17)

  • Indígenas: "constantes" e "permanências". Não alude às folntes ou interlocutores.

"Dos indígenas pesquisei as "constantes" e "permanências" alimentares, sólidas e líquidas, técnicas, recursos condimentos. A particopação na comida contemporânea nacional." (p. 17)

  • Africanos: "presença". Argumento de autoridade: convivência.

"Dos africanos, d’África Ocidental, sudaneses e bantos, levantei o possível panorama alimentar, partindo de informações de fins do século XV. E sua presença nos víveres de um grande engenho de açucar brasileiro, na primeira metade do século XVII, assim como o pequeno mundo de permutas afro-brasileiras, até o século XVIII, clímax da influência negra nesse setor. As épocas subseqüêntes foram complementares e nào modificativas." (p. 17)

"Recorri à bibliografia de viajantes estrangeiros no Brasil do século XIX, 3e bem principalmente às notas pessoais tomadas ouvindo ex-escravos, Fabião Hemenegildo Ferreira da Rocha (Fabião das queimadas) e Silvana.

(…)

De valor inapreciável foram as reminiscências do coronel Felipe Ferreira da Silva, "Felipe Ferreira, da Mangabeira", dono de escravos até 1887 (…)" (p. 17)

"Com os africanos, as consultas foram em livros fundamentais e nalgumas raridades que não envelhecem." (p. 18)

  • Portugueses: antigüidade e fixação. Fontes clássicas e acadêmicas.

"Dos portugueses documento-me em fontes antigas, eruditas e populares, historiadores, etnógrafos e folcloristas; autos de Gil Vicente, rifões vulgares e estudos especiais, fixando os padrões alimetares através do tempo." (p. 18)

  • Hábitos alimentares são espaço por excelência da tradição. O conhecimento do valor nutricional de cada elemento feito pela ciência (símbolo o progresso, modernidade) ainda não foi capaz de alterar o costume alimentar de cada povo, fundamentado em um tipo de paladar que lhe é próprio. (essa é, provavelmente, uma das teses do livro).

"Existe a evidência de expor padrões alimentares que continuam inarredáveis como acidentes geográficos na espécie geológica. Espero mostrar a antigüidade de certas predileções alimentares que os séculos fizeram hábitos, explicáveis como uma norma de uso e respeito de herançã dos mantimentos de tradição. A modificação desses usos dependerá do mesmo processo de formação: o tempo. Impõem-se a compreensão da cultura popular como realidade psicológica, entidade subjetiva atuante, difícil de render-se a uma imposição legislativa ou a uma pregação teoórica." (p. 18-19)

" E a eleição de certos sabores que já constituem alicerce de patrimônio seletivo no domínio familiar, de regiões inteiras, unânimes na convicção da excelência nutritiva ou agradável, cimentada através de séculos, não se transforma com a mesma relativa facilidade da mudança de trajes femininos ou aceitação de transportes mais velozes e de melhor capacidade de de carga nos veículos." (p. 19)

  • O centro da tese colocada acima é a questão do paladar. Cada cultura/povo constrói seu paladar específico que molda seus costumes alimentares e é por eles moldado. Paladar não têm relação direta com nutrição e muitas vezes se opõe a ela. A idéia de nutrição integra o conjunto de noções que se formam em torno da idéia de progresso e que colocam valores como dinheiro, utilitarismo, pragmatismo, "cientificamente provado", acima dos valores tradicionais de um determinado povo.

"(…) agente milenar, condicionador, poderoso em sua ‘suficiência’: o paladar." (p. 19)

"É indispensável ter em conta o fator supremo e decisivo do paladar. Para o povo não há argumento probante, écnico, convincente, contra o paladar…" (p. 19)

"A batalha das vitaminas, a esperança do equilíbrio nas proteínas, terão de atender as reações sensíveis e naturais da simpatia popular pelo seu cardápio, desajustado e querido. Falar das expressões negativas da alimentação para criaturas afeitas aos seus pratos favoritos, pais, avós, bisavós, zonas, seqüência histórica, é ameaçar um ateu com as penas do Inferno.. O psicodietista sabe que o povo guarda sua alimentação tradicional porque está habituado; porque aprecia o sabor; porque é a mais barata e acessível. Pode não nutrir, mas enche o estômago. E há gerações e gerações fiéis a esse ritmo." (p. 19)

  • LUIS DA CAMARA CASCUDO.

Cidade do Natal.

Setembro de 1962.

Fevereiro de 1963.

  • Todo trabalho do homem é para sua boca…

Epígrafe:

"Omnis labor hominis in ore eius.

Eclesiastes, VI, 7."

  • Sumário dos temas tratados:

Importância da alimentação na existência do homem. O que comem os homens: desde os pré-históricos aos contemporêneos, enfatizando as diferenças entre cada povo/cultura. O papel de alimentos como a carne, o leite e derivados, o pão, a cerveja e bebidas fermentadas, caldos e papas, bebidas quentes etc. na história da alimentação. Alimentos específicos de certos povos que parecem absurdos a outros. Instrumentos de cocção e sua influência nos costumes alimentares. Surgimento e importância dos talheres na história da alimentação. As funções simbólicas do ato de alimentar-se (a refeição em conjunto como símbolo da paz, do acordo etc.) e os rituais que o envolvem. A religião como modeladora de hábitos alimentares.

  • A tese central deste capítulo pode ser apreendida como um conjunto de idéias encadeadas. Vamos a elas:

A alimentação é uma necessidade natural que, como o sexo, impulsiona a existência humana. Mas é mais constante e imprescindível que este último, ao menos no aspecto individual.

"Toda a existência humana decorre do binômio Estômago e Sexo. A Fome e o Amor governam o mundo, afirmasva Schiller.

(…) O sexo pronuncia-se em época adiantada apesar das generalidades delirantes de Freud. O estômago é contemporâneo, funcional ao primeiro momento extra-uterino. Acompanha a vida, mantêndo-a na sua permanência fisiológica. O sexo pode ser adiado, transferido, sublimado noutras atividades absorventes e compensadoras. O estômago não. É dominador, imperioso, inadiável." (p. 21)

Os primeiros homens pré-históricos orientavam sua alimentação pelo valor nutritivos dos alimentos que lhes eram acessíveis. É a religião o primeiro fator que vai, através das proíbições fundamentadas no seu universo simbólico do sagrado e do não-sagrado, criando costumes alimentares dissociados da questão nutricional, ainda que com o tempo, muitas vezes, se percam a origem religiosa desses costumes.

"Desde que nasce o homem precisa obter sua alimentação, hidratos de carbono, gorduras, proteínas, sais, água. Deve retirar esses elementos das carnes, dos vegetais e minerais." (p. 22)

"Não acredito no homem pré-histórico unicamente vegetariano." (p. 22)

"A renúncia da alimentação de carne verifica-se nos povos que a tinham abitualmente na ementa." (p. 24)

"As proibições religiosas determinaram costumes alimentares inflexíveis" (p. 26)

"O limite inicial seria, outrora, dado por um tabu religioso. O tabu dissolveu-se no costume, mas o costume é lei iderrogável." (p. 27)

"Explica-se desta forma que a alimentação humana esteja muito mais poderosamente vinculada a fatores espirituais em exigência tradicional que aos próprios imperativos fisiológicos." (p. 28)

"O ato de alimentar-se transcendeu do próprio imediatismo fisiológico da nutrição." (p. 75)

A alimentação é o espaço das permanências e, portanto, aquele em que se se fixa mais profundamente a tradição.

"A escolha dos nossos alimentos diários está intimamente ligada a um complexo cultural inflexível. É preciso um processo de ajustamento em condições especiais de excitação para modificá-lo com o recebimento de outros elementos e abandono dos antigos. Alguns são dificilmente assimiláveis para outras áreas embora saibamos que contêm vitaminas, calorias, digeribilidade (…)" (pp. 26-27)

"Mas sabemos da raridade e quase impossibilidade de um alimento novo. Há normalmente um retorno ao que se comeu e for a esquecido pela presença de comidas mais atraentes e prestigiosas pela propaganda." (pp. 72-73)

O Progresso científico e econômico contra a tradição: a nutrição, a pressa e a ganância contra o paladar e o costume. O progresso é diferente e até mesmo contrário à civilização, na medida em que esta se fundamenta na tradição. Cozinha internacional é diferente de alimentação universal: a primeira é filha do progresso que tudo unifica através de modismos que esmagam as tradições de cada povo; a segunda se refere à raízes comuns de certas práticas alimentares em culturas diversas, que podem ser compreendidas através de uma busca das origens das tradições alimentares.

"Os gastrônomos ensinam a ciência do ‘saber comer’, que não é a mesma coisa para os nutricionistas." (p. 42)

"(…) O problema é que, aumentando miraculosamente o número dos consumidores, diminui assustadoramente a dinastia fidalga dos cozinheiros e das cozinheiras, raça semi-extinta que não se renovará. Os apetites são substituídos pelas fomes e a inquietação moderna impossibilita as lentas paciências operadoras, realizando as maravilhas do paladar. O comum , natural, obrigatório, lógico para a mulher em nossos dias é saber improvisar um jantar, enfeitar o prato, disfarçar a fisionomia de cada espécie deglutível com a ciência nefasta dos colorantes mascaradores, das mistificações sugestivas, da incaracterização gustativa. Vamos caminhando, melancolicamente, para o que dizia Berthelot a Théofile Gautier, depois de uma ceia improvisada no Paris cercado pelos alemães em 1871: ¾ Je mange sans comprendre." (p. 42)

"O signo da velocidade anula e desmoraliza as demoradas preparações que orgulhavam os antigos gourmets. A industrialização dos alimentos reduz a cozinha a um armário de latas. A técnica essencial limita-se a saber abrir uma lata sem ferir os dedinhos. Um jantar egresso de latas é ato de comer mas não atinge ao nível de uma refeição." (pp.42-43)

"Para facilitar a ampliação mecânica da produção enlatada impõe-se a cozinha ‘internacional’, padronizando-se médias abstratas e convencionais de pratos que não são de nação alguma e menos construíram alimentos regulares no tempo. Criação racionalista contra a tradição humana e lógica da preferência. Domina o cardápio de que ninguém gosta e com que todos se habituam. Uma cozinha ‘internacional’ é a derradeira submissão humana à sugestão da propaganda comercial." (p. 43)

O progresso faz o homem retoornar à natureza, à condição animal.

"Uma vitória da falsa economia sobre a normalidade da alimentação. Do ‘progresso’ contra a tradição valorizadora da refeição.. Comer de pé, elegendo o prato pela pressão de uma mola, é modalidade de pasto, indispensável, justo, mas não-humano, não natural, não social. Anúncios de refeições em latas, pastilhas, comprimidos, capsulas, água sintética, pílulas contendo essência de café e chá, para findar, é uma padronização do robot sobre o sapiens. A mesa é substituída pela mecânica dos self-services. Poema deglutível. Música aspirável. Progresso em vez de civilização." (p. 43)

"(…) A arte de comer, cerimonial festivo e íntimo, é um patrimônio que orgulha o homem, distinguindo-o do gorila, do orangotango e do chimpanzé, senhores de uma norma nutricionista bem mais superior à dos humanos. Comer é um ato orgânico que a inteligência tornou social. Todo o animal sabe escolher e saborear seu alimento. Não sei se posso afirmar o mesmo dos meus semelhantes, implumes e bípedes. Comer para viver e viver para comer são formas excepcionais, irracionais e criminosas do direito de existir. Delitos contra a natureza selecionadora e lírica da espécie humana. Tempo é dinheiro mas dinheiro não é tempo. Cronológico ou dimensional.

Abane a cabeça, leitor!…" (p. 44)

Outras questões importantes:

  • Por vezes Cascudo trata de seu objeto com um "olhar antropológico". Procura dissolver o etnocentrismo e os preconceitos em relação às diferenças culturais.

"Carne de gato, pastel de ratazana, gafanhoto torrado, larva cozida, estão for a dos nossos padrões. São, entretanto, iguarias normais e provavelmente limpas e saborosas quando ingeridas sem indentificação." (p. 27)

"Quando saímos do costume dizem ser uma depravação do paladar. Não será a perdiz faisandé, os queijos Roquefort e Camambert, entontecedores e elegantes, que dêm conforto com o pedaço de foca deteriorado que fará as delícias do esquimó." (p. 28)

  • Por outro lado, a idéia de que há povos em um nível evolutivo superior está presente na utilização dos termos primitivo e primitivo contemporâneo.

"Culturalmente são grupos humanos mais primitivos." (p. 25)

  • A relação entre universal e regional. Práticas alimentares universais e antigas se manifestando de formas particulares em cada povo.

"Era, no mundo romano, hemostático, contraveneno, fortificante, acalmador de cóleras. O leite das burras animava as crianças débeis e os tuberculosos, crença mantida nos sertões dos nossos dias." (p. 31)

"Os caçadores árabes e asiáticos levavam-na [a coalhada] em sacos de couro, como o sertanejo brasileiro a guarda para fazer queijo." (p. 32)

"(…) Mas, há menção de que o babilônio deixava o pão fermentar n’água no mesmo processo do tupi brasileiro do século XVI, pondo de molho o beiju de mandioca para ter uma bebida que o fizesse formoso e valente. A cerveja de Babilônia, Kawss, era trigo e cevada em demorada infusão." (p. 34)

"(…) O divino Aristeu, filho de Apolo, ensinara seu trato. Inventara a mais popular bebida de Roma, o mulsum, vinho e mel, tonificador. Cachaça e mel de abelhas é bebida tradicional no sertão do Brasil." (p. 61)

  • Cascudo recorre repetidamente à etmologia para compreender páticas alimentares.

"(…) ‘simpósio’, sinônimo vulgar de congressos, encontros, colóquios intelectuais, quando era a segunda parte do deipnon, a principal refeição da Grécia, de sun-posis, com-a-bebida, tendo a função precípua e única de beber e divertir-se. (…) A finalidade erudita, por si só, não conseguiu recriar uma denominação legítima. Foi obrigada a recorrer ao domínio onipotente da alimentação." (p. 40)

"(…) A farinha, do radical latino far, é genérico de cereais, moídos, pilados, triturados. De sua importância etnográfica revelam os vocábulos farto, fartura, repleto ou abundancia de farinha. O próprio "farnel", a provisão, provinha de farinariu, farinária, bolsa de farinha." (p. 45)

"Meridiana e sesta são denominações latinas correspondentes ao ligeiro descanso depois de alimentar-se. Meridio, meridior, porque dormiam ao calor do meio-dia." (p.58)

  • Utilização de ditos e versos populares.

"Ó meu São João
Eu já me lavei;
E minhas mazelas
No rio deixei!" (p. 69)

  • Influência nefasta do homem branco que surje por vezez como deseducador.

"(…) O indígena conversando enquanto come é influência do homem branco, deseducador excelente." (p. 49)

  • A questão da fome, acompanhada sempre de refência a Josué de Castro.

"A fome determina o regresso aos recursos milenares da alimentação. Na mesma proporção da escassez o homem procura restabelecer o equilíbrio apelando para alimentos esquecidos pela inferioridade nutritiva. Essa dieta da fome, regimes de miséria e precariedade faminta, epidêmica ou endêmica, já constitui ciência nova, com seus mestres e expositores elegantes, destacando-se o brasileiro Prof. Josué de Castro. Entidades internacionais foram organizadas para o combate à morte bianca, como dizem os italianos." (p. 71)

  • Cardápio indígena

No processo histórico da formação do Brasil, a contribuição indígena para os hábitos alimentares do brasileiro foi intensa, enquanto a do africano foi muito pequena. O tempo, enquanto processo histórico, constitui-se em uma escala de valoração de culturas. A princípio o negro africano, ao contrário do índio, resiste à assimilação dos hábitos alimentares dos portugueses, mas com o tempo seus próprios costumes alimentares acabam por diluirse no processo de aculturação. As comidas indígenas que integram o cardápio brasileiro, permanescem quase que as mesmas do início da colonização.

"[o indígena] Revelava um índice de assimilação dietética mais acentuada que o africano ocidental ou o árabe da orla mediterrânea, defendendo mais teimosamente o tradicionalismo do paladar. Seria essa obstinação alimentar semita e negra sua pouca irradiação na geografia da nutrição. O africano esteve muito mais espalhado e penetrante no Brasil que o indígena. Mais fixo, mais contínuo, mais participante da vida brasileira nascente. O mameluco não consevava as predileções do ancestral ameraba e sim do pai lusitano. O negro escravo daria, entretanto, menor contribuição à dieta nacional e popular que o furtivo indígena, já em meados do século XVIII isolado e em via de dispersão étinica nas regiões de maior densidade demográfica. A comida indígena permaneceu mais fiel aos modelos quinhentistas. Aos padrões da própria elaboração das farinhas, assados de carne e peixe, bebidas de fruta. O brasileiro aprendeu uma altíssima percentagem, mas o indígena, ainda existente, não se diluiu na irradiação influencial. Nào se dissolvel na aculturação como a ciência negra da culinária, dificilmente legítima, raramente autêntica." (p. 87)

  • O Português etnocêntrico nomeia os alimentos que encontra no Novo Mundo com termos que classificam alimentos que já conhece.

"O ‘inhame’ visto por Pero Vaz de Caminha e pelo Piloto Anônimo era, indiscutivelmente, a raiz da mandioca. Nec quid nimis…" (p. 93)

  • O português é o introdutor de técnicas mais evoluídas e da sofisticação do paladar (atravé da utilização de sal, açucar e temperos) nas culinárias indígena e negra. O português é também o grande difusor dos alimentos indígenas na África e na Europa.

"O europeu no Brasil ampliava as roçarias de mandioca, classicamente as roças, historicamente as granjearias, comendo, vendendo, comprando, valorizando, melhorando as ‘casas de farinha’, fazendo em máquinas de ferro o que d’antes era de madeira, precária e frágil, exportando-a para as colônias africanas, impondo, habituando, viciando o preto da orla atlântica do continente negro com a revelação da mandioca, farinha, beiju, mingau, pirão." (p. 105)

"Técnica portuguesa com material brasileiro, o pirão brasileiro é uma obra-prima nacional, colaboração afetuoda e positiva na permanência realizadora, como a mulata." (p. 120)

  • A farinha é o alimento nacional.

"A farinha é o primeiro conduto alimentar brasileiro pela extensão e continuidade nacional" (p. 109)

  • O milho promove a convergência das três raças.

"A convergência e fusão das culinárias indígena, africana e portuguesa levaram ao brasileiro o ‘complexo’alimentar do milho que a industrialização tornou permanente." (. 125)

  • Preguiça como característica cultural do africano.

"Não nos assombremos com a vitória do milho na Europa, mas sobretudo é surpreendente sua expansão no continente africano, domínio dos milhetos, do inhame e do sorgo. Era uma cultura a seco, fácil e cômoda para a preguiça negra, esperando apenas que fossem quebrar as espigas para a refeição diurna, adaptando-se ao paladar, plástica no fornecimento de subprodutos, simples no prepara e conservação." (p. 126)

  • Indígena: um contemporâneo primitivo.

"(…) Não será no ângulo dos temperos que devemos muito à ciência cabloca da alimentação.

Essa situação autentica a normalidade etnográfica do brasil indígena, Coerência. Equilíbrio. Lógica.

Valia 1500 o neolítico ou mesmo finais do maglemosiano, oitomilênios antes de Cristo. Noutras visadas, um mesolítico retardado." (p. 138)

  • Dieta Africana

Tradição x progresso: a cozinha internacional.

"Quando um hotel iluatre em capital brasileira evita temeroso servir uma feijoada-completa (que é mais ou menos recente) ou fritada de camarão, moqueca de peixe, grudado ao menu internacional que não têm origem nem história, n’Africa atual, os pratos antigos implicam propaganda da soberania, apresentados aos olhos e degustação dos visitantes, naturais, indisfarsáveis, orgulhosamente expostos, como a epiderme que não mudou com a cidadania e fraternal igualdade política no mundo." (p. 192)

  • Alimentação como espaço da tradição. Na África isto se acentua e a influência européia é pouco eficaz.

"A presença européia de tantos séculos dará matiz sensível na cozinha popular das cidades e grandes vilas africanas. Matiz sensível mas não predominante. Sensível quanto ao emprego de um ou outro condimento, sugerindo imitação, mas ineficiente para transformar ou modificar as bases dop cardápio negro, inabalável como todo passadio coletivo, natural e congênnito como a cor dos olhos.

Todos os elementos levados à África, há quinhentos anos, foram utilizados dentro das normas existentes e habituais." (p. 199)

  • Ementa Portuguesa

A fome é algo moderno. No portugal do século XVI podia-se ser pobre, mas não se passava fome.

"Os personagens vicentinos movimentavam-se num clima de vida suficiente e não precária. Alguns seriam carentes mas não há famintos. Queixam-se de cansaço e da lida e nunca da impossibilidade de se alimentar. As iguarias são citadas como referências naturais, próximas, possíveis. Não se fala em mendigos famélicos. Todos trabalham." (p. 256)

 



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