CÂMARA CASCUDO, Luis da. Viajando o Sertão . 3ª ed. Natal: Fundação José Augusto - CERN, 1984; por Mirella Farias

• Ementa:

"Viajando o Sertão" foi publicado em 1934 no formato de livro e também como uma série de crônicas no jornal "A República" de 31/05 a 22/07 de 1934. Precederam a primeira edição mais duas, uma em 1975 e outra, em 1984, decorrente da "I Semana de Estudos Cascudianos", promovida pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Livro composto por dezoito crônicas, que narram a viagem realizada por Luis da Câmara Cascudo, no período de 16 a 29 de maio de 1934, ao interior do Estado do Rio Grande do Norte. Cascudo faz esta viagem a convite do Interventor Federal Mário Câmara e ingressa na comitiva oficial composta por mais outras quatro personalidades ligadas a Educação, a Agricultura e Açudagem; Anfilóquio Câmara (Diretor geral do departamento de Educação), Antônio Soares Júnior (Prefeito de Mossoró), Alcides Franco (Chefe da segunda seção técnica do Serviço de Plantas Têxteis) e Oscar Guedes (inspetor do mesmo Serviço). Em 1934, Luis da Câmara Cascudo, ocupava o cargo de Chefe Provincial do Integralismo.

Segundo uma nota presente na edição de 1975, escrita por M. Rodrigues de Melo, o fato de Câmara Cascudo ser um integrante da comitiva oficial do Interventor Federal Mário Câmara, acabou por suscitar uma grande polêmica. A ala revolucionária do Integralismo não gostou nem um pouco, assim como, o grupo político que tinha por chefe o Deputado José Augusto Bezerra de Medeiros, segundo a nota, um "político apeado do poder pela revolução de 1930 julgando-se herdeiro natural da política do Seridó" e que por isto, não queria que "lhe escapassem as rédeas e a liderança da política do Estado." O Deputado levou publicamente a acusação de suborno (27 de abril de 1934), afirmando, que Luis da Câmara Cascudo teria recebido o " ‘pagamento de quatro contos e tantos mil réis’ " do governo do Estado, transformando-se em "orador das caravanas interventoriais". A nota apresenta a transcrição da acusação e da defesa.

Cascudo defende-se da acusação afirmando:

"(...) Tenho feito vários discursos em presença de chefes locais do Partido Popular e Povo, e desafio, de maneira formal, que qualquer um desses senhores afirme, sob sua assinatura, que me ouviu abordar qualquer tema que se referisse ao momento político atual. Se o tivesse feito, assumiria absolutamente toda e completa responsabilidade.

Chefe Provincial Integralista, miliciano convicto, considero os Partidos Políticos meras fórmulas desacreditadas e incapazes de uma renovação social. Não pertenço a nenhuma agremiação partidária e mantenho relações íntimas com vários próceres que não ignoram a retidão de minha atitude assumida publicamente a 14 de julho de 1933.

Aos ‘camisas – verdes’ de minha Província não dou explicações, porque eles me conhecem de perto. Aos políticos é desnecessária qualquer justificação em contrário às suas afirmações, porque ‘política é isso mesmo.’ (Ver "A República" de 04. 09. 1934.)"

31/05/34

"Viajando o Sertão (I)"

"Viajamos, da madrugada de 16 à manhã de 29 de maio, 1307 quilômetros: 837 de automóvel, 40 de auto-de-linha, 38 de trem, 30 de canoa, 2 de rebocador e 360 de hidroavião.

Esse cômputo é a expressão oficial e sisuda, mas não corresponde inteiramente à verdade. Andamos a pé, de cadeirinha, de macaquinho, dentro d’água, na lama (...), saltando de pau em pau (...), carregando maletas, levando companheiros no ombro, livrando os xiquexiques, galopando a cavalo, apostando velocidade nas retas areientas enquanto o Ford empacava, atolado."

"Falta anotar a fome, o frio das roupas molhadas, a fadiga das caminhadas, a mania obsequiosa do sertanejo oferecer-nos galinha e macarrão em vez de carne-de-sol e coalhada. Tudo se compensava, quando chegávamos aos povoados, às vilas e cidades embandeiradas e cheias de povo, assombrados com a ousadia dos ‘pracianos’."

"Minha curiosidade acendia-se ao contato dos temas prediletos. Os portões dos cemitérios, todos guardando reminiscências do barroco jesuítico (...); a jornada pelo rio Mossoró, noitinha, numa canoa balouçante, ao palor dum luar hesitante (...), vinte outros assuntos, perdem espaço para registo e saudade."

"(...) tipos, anedotas, casos, observações (...) a incrível espirituosidade das respostas sertanejas, são dignos de maior demora numa leve e breve série de registos."

[Termina afirmando]

"Por mim, não escreveria nada. Creio que não interessaria a ninguém saber se gostei ou não das terras que visitei. Mas pedidos foram muitos e em várias localidades. Acabei prometendo e as promessas, digam lá o que disserem, cumprem-se ..."

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L. da C. C.

02/06/1934

"Viajando o Sertão (II)"

"Até Santa Cruz rodamos sobre areia úmida e quase silenciosa. Oscar Guedes, inspetor do serviço de plantas têxteis, arriscava idéias sobre campos experimentais. O outro companheiro era Alcides Franco, chefe de serviço, um técnico de renome, com cursos especiais nos Estados Unidos e Inglaterra , saudoso da vida universitária e contando story deliciosas. Anfiloquio, junto ao motorista, só falava para desmentir quem o julgava cochilando." [companheiros de viagem]

"Serro Corá é uma surpresa. Povoado claro, com instalações elétricas, escola, capela, comércio, residências amplas e com um ar leve e frio que lembra Teresópoles, encantou-nos."

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"O Ford dança no piso irregular. São Romão passa vagaroso como uma amostra de trabalho raciocinado e tranqüilo. A usina domina a eminência. Parece uma vila operária, azafamada e trepidante."

"Duma colina, bruscamente, aparece Angicos, um Angicos duplicado, espalhando uma casario numa área infinitamente maior que há dez anos passados. Prédios novos, estradas (...), caminhões pesados de algodão dizem índices de produção radicada.

O interventor visita o Grupo Escolar. Eu fico olhando as calçadas cheias de povo que afirma a impossibilidade de transpor o rio Assú, trasbordante e seu aliado, o Paraú, de barreira a barreira."

[Percurso – Santa Cruz – Cabeço Branco – Serro Corá – São Romão – Angicos.]

"Duas canoas oscilam como pêndulos no dorso trêmulo daquela água viva. Anfiloquio pergunta se tenho seguro de vida. Respondo que tenho a vida segura na confiança de Deus. (...) Apesar de contar algumas coragens, para que não confessar, estou com medo. Medo de molhar-me que, algumas vezes, é pior que morrer."

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L. da C. C.

  • Ao lado da segunda crônica de Câmara Cascudo da série "Viajando o Sertão", o jornal publica uma reportagem intitulada "A excursão do Interventor ao Interior do Estado".
"Partindo de Natal no dia 16 de maio (...), o interventor Federal [Mário Camara], que se fazia acompanhar dos drs. Anfiloquio Camara, diretor geral do departamento de Educação, Antônio Soares Júnior, Prefeito de Mossoró, Alcides Franco, chefe da segunda seção técnica do Serviço de Plantas Têxteis, Oscar Guedes, inspetor do mesmo Serviço e Camara Cascudo, chegou a Santa Cruz."
  • A reportagem descreve a trajetória do interventor Federal pelas cidades do interior do Rio Grande do Norte, as homenagens prestadas a ele, almoços, jantares, as recepções e condecorações. É interessante contrastar essa versão oficial da viagem com as crônicas escritas por Cascudo. Tanto a crônica quanto a reportagem relatam a viagem para o Sertão, mas com perspectivas diferenciadas; são olhares que se direcionam para paisagens distintas.
  • Na minha opinião, importam menos a Cascudo, e isto, fica claro em seu relato, as homenagens, o caráter político da ida ao Sertão e mais a preocupação em descrever o cotidiano das cidades, a gente simples e anônima.
  • Cascudo transita tanto no espaço oficial, âmbito da política e da notoriedade (cargos importantes, amizades influentes etc.), quanto no espaço anônimo onde reside o popular (conversas, estórias, casos, etc.).
  • Cascudo aparece na versão oficial discursando:

"Concedida a palavra, o Dr. Dario de Andrade pediu que o Dr. Câmara Cascudo, filho do município [Paraú] , falasse. (...), falou o Dr. Câmara Cascudo aceitando o título de saudar a velha terra de seus pais e avós. Falou sobre a função das escolas e a saudade de seus dias de menino decorridos naquela terra, sob a benção carinhosa daquela bondade que novamente o recebia e agasalhava. A grande assistência aplaudiu longamente o orador.(...)"

03/06/1934

"Viajando o Sertão (III)"

[Percurso – Santa Cruz – Cabeço Branco – Serro Corá – São Romão – Angicos – Assú]

"Assú dá-nos impressões várias. Aqui houve o ‘fogo de 40’, ali falavam os oradores na campanha da abolição que foi vitoriosa antes da lei de 13 de maio, além apruma-se o mais velho sobrado. As andorinhas passam, inúmeras, povoando o ar de sonoridade pelo frêmito do vôo rápido. A praça é deserta sob o palor das lâmpadas. Eu falo de integralismo, toponímia, algodão. (...)"

"Pela manhã tivemos a linda festa do Colégio Nossa Senhora das Vitórias. A vitória maior é viver aquelas freiras ilustres, quase todas nórdicas, num clima ardente como do Assú. O colégio é uma maravilha de ordem, disciplina, rendimento educacional e beleza de espírito. Sente-se que ali se trabalha para receber no outro mundo paga maior."

"Na saída sei que iremos para o Centro Artístico Operário Assulense. Mas o Ângelo Pessoa tem um operário para mostrar-me e atravesso os areais da cidade (...) onde, numa casa caindo de velha e negra de velhice, mora José Leão, sexagenário, ‘fazedor de santos’.

Esse José Leão, como as andorinhas, são duas fortes impressões do Assú. É o tipo do imaginário primitivo, sereno, resignado, incompreendido, passando fome, trabalhando sem esperança, sem ambiente, sem auxílio, sem estímulo, insensível e obstinado, artista legítimo, com uma intuição de escultura, um senso decorativo, um tipo de moldar as fisionomias que lembra a rudeza elegante e máscula de Memling. José Leão mostra-me dezenas de santos, crucifixos, anjos, ovelhas místicas. Não tem instrumentos. São pedaços de canivetes (...), cacos de louça, pires bolorentos, quingas de coco (...). Longe de ter nossa mania de beleza dos Santos moldados em gesso e feito à maquina, iguais e bonitinhos, José Leão grava na imburana plástica rostos humanos, bem semelhantes ao tipo humano, possíveis e naturais. Ninguém compreende a maestria daquela intuição que lá fora o faria rico e aqui o mata de fome. Eu tive nas mão uma Nossa Senhora do Perpétuo do Socorro verdadeiramente maravilhosa. Um São José, um São João Batista, que estão sem preço, pedem uma página de elogio pela firmeza incrível com que aquele velho gravou os traços morais na árvore que lhes deu nascimento e vesti-os com uma precisão minuciosa e pictórica dum desenhista à Batps.

O studio é fumacento e frio. Andrajoso e triste, com uma melancolia superior e expontânea, o imaginário recebeu-nos erguendo-se devagar duma rede sem cor. Na mão havia um livro. Não era o ‘Flos Santorum’. Era a ‘Retirada da Laguna’ E creio que o símbolo é fiel. Aqui esta ele fazendo sua retirada, sem roupa, sem pão, sem aliados, sem abrigo mas guardando todas as armas do trabalho, as forças da vontade e as bandeiras da fé. José Leão trabalhador sem reclame, saúdo-te em nome dos que trabalham com alma e morrem sem glória."

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L. da C. C.

  • O jornal publica novamente a versão oficial da viagem ao Sertão.

"No dia 18 o Interventor chegou a vila de Augusto Severo (...)."

"O Dr. Mário Camara teve uma magnífica recepção por parte dos mais significativos elementos sociais de Augusto Severo (...)."

"Às 16 horas deu-se a partida falando o Dr. Câmara Cascudo, despedindo-se da terra de seus pais e avós e evocando as famílias tradicionais dos Melos, Veras e Jacomes, sendo demoradamente aplaudido."

"A viagem para Caraúbas retardou-se pelo estado do caminho (...)."

"Realizou-se o banquete assistido pelo escol local. (...) Dr. Mário Camara , (...) pediu ao Dr. Câmara Cascudo que, em nome dos presentes da comitiva, saudasse a Família de Caraúbas, ali representadas pelos seus mais legítimos elementos. O Dr. Câmara Cascudo (...) levantando sua taça em saudação à mulher caraubense, mãe, esposa e filha, tecedeira de felicidade, artífice da paz, mãe de soldados e de marinheiros e de lavradores, seiva de fé que se perpetua na coragem com que o sertanejo enfrenta e vence a natureza, corrigindo-lhe a fisionomia (...)."

05/06/ 1934

"Viajando o Sertão (IV)"

[Percurso – Santa Cruz – Cabeço Branco – Serro Corá – São Romão – Angicos – Assú - Paraú]

"Rodamos para Paraú, povoação que bati inteira com os pés infantis, há vinte anos. Corríamos em campos suaves, ladeados de vegetação fina e verde. Conversa-se em plantas têxteis, aproveitamento de fibras. Eu penso em Assú. Assú era a cidade literária da Província como Natal era a capital política. (...) Van Gennep demonstrou isto. Assú era, literariamente, o mais vivo centro da Província até os anos da República. Depois as andorinhas políticas cortaram os ares (...) para outros quadrantes. Assú ficou deserto e cheio de recordações (...). Lembro-me do velho Lucas Vanderlei, orgulhoso do Assú, recordando-lhe o passado. Tempo velho. (...) o caminho não permite um ‘memorial day’ assuense."

"O auto corre, galga os primeiros metros, num impulso rouco, pára trepidando (...). Um a um os autos se detém. Eu aproveito para pular a cerca e ir ver um milharal, imenso, (...), cheirando a São João, prometendo o cardápio sem par do nordeste. No lamaçal luta-se cortando mato para evitar o piso falso. Empurra-se. Conversa-se. Finalmente, num bramido de motores enfurecidos, os autos arrancam, atirando lama e folhas pelo ar. Passam. Eu ando a pé e vou retomar meu lugar adiante. A um dos caboclos que ajudaram a desvencilhar os carros, pergunto o nome do local. Tenho uma resposta que é uma ironia: – Isto aqui é ‘corredor da Fortuna’!..."

"A festa de Paraú é para mim um sopro que vem de longe (...). Vários homens eram meninos do meu tempo de irresponsabilidade jurídica. Dona Maroca Véras, Silvestre, Luiz Gondim, meu primo, a fama do meu nascimento em terras de Campo Grande e daí a aclamação para que eu falasse em nome da saudade que o ambiente revigora, tudo reapareceu, súbito numa vida poderosa."

"Depois do jantar fico dentro do automóvel parado com Alcides Franco falando sobre Integralismo, liberalismo e república democrática. Para mim é um encanto narrar como Plínio Salgado começou com nove rapazes e tem duzentos mil em dois anos, com o silêncio dos jornais e todas as baterias do ridículo assentadas contra ele."

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L. da C. C.

"Viajando o Sertão (V)"

"Os Negros"

"Uma surpresa no sertão é o quase desaparecimento do Negro. Raros os negros-fulos e ainda mais o retinto. Este não o vi nos 1.307 quilômetros viajados." (p.22)

"(...)Regiões inteiras corremos sem um herdeiro dos velhos trabalhadores escravos. A lenda da "mestiçagem nordestina" esta pedindo uma verificação para desmentido completo. Nós tivemos sempre uma percentagem negra inferior aos outros elementos étnicos." (p.22)

"(...) como notou Roquete Pinto a ligação já se fez entre o branco e a mulata-mestiça, clareando o rebento.

Mas para nós do Rio Grande do Norte, ainda há outra explicação histórica. Nunca tivemos vasta escravaria." (p.23)

"Sei eu que posteriormente, na época das altas do açúcar, o escravo cresceu entre nós. Mas não se fixou no sertão" (p.23)

" Em resumo, nós não tivemos em escala progressiva, as indústrias que justificavam a vasta escravaria. Não tínhamos minas nem algodoais que pedissem levas e levas humanas. Mesmo o açúcar influía pouco. A massa negra adensava-se nos vales. O sertão, com a seca de 1877, despojou-se dos escravos que possuía, indo-os vender em Moçoró. O espetáculo do mercado de carne cristã revoltou os moçoroenses.

Para o sertão ficou o escravo-de-confiança, o negro fiel, companheiro de trabalho. Ficou também a mãe-negra, mãe-de-leite, contadeira de história de Trancoso e responsável pelo ‘pavor cósmico’ de que falava Graça Aranha.

A explicação maior da ausência de negros nas terras sertanejas, ausência ou carência, é o fato de o sertão manter a tradição da gadaria, a criação dos currais de gado, origem de sua força destreza e agilidade. (...) O negro não era tão preciso num cavalo quanto era dentro dum canavial ou apanhando a baga de café nas terras roxas." (p.23-24)

[Afirma ter publicado na "Revista Nova"(São Paulo, 15/04/1931, n. 1) um trabalho a respeito da Evolução econômica do Rio Grande do Norte e a escravaria.]

"(...)Cito para que não se julgue de ter eu só agora atinado com o coeficiente branco como dominante no Rio Grande do Norte." (p.24)

"Batendo tantos municípios, em companhia do Interventor, por isto mesmo, esperava eu que a visita atraísse todos elementos sociais e desse margem a uma observação que seria impossível noutras condições. Via eu grandes massas assistindo a festas ou mirando curiosamente o governante do Estado. O elemento negro só se destacava por sua insignificância." (p.24)

"(...) O irmão Negro desaparece ..." (p.24)

"Viajando o Sertão (VI)"

"Igrejas e Arte Religiosa"

"(...) A mania da remodelação, para pior, ataca os nervos de muita gente bem intencionada. Creio firmemente que, na futura reforma dos Seminários brasileiros, reforma com as luzes dum Dom Xavier de Matos, seria indispensável a cadeira de Arte Religiosa Brasileira para ensinar aos nossos párocos um mais profundo amor pelos monumentos legados pelas gerações desaparecidas. Sirva de exemplo o altar da Igreja de Serra Negra, em madeira talhada, simples e emocionante prova de fé, quebrado, inutilizado, destruído, para ser substituído por um altar de tijolo ou cimento, sem significação, e história." (p.24)

"Durante o séc. XIX quase todas as Igrejas foram ‘remodeladas’, raspados seus frontispícios venerados, riscadas em sua fisionomia própria e coberta de cal e enfeites, de acordo com a inteligência do tempo. Ninguém lembrou a necessidade de conservar a fachada tal como estava e fazer adaptações interiores, respeitando os altares quando dignos de mantença. Igreja é prova de Fé e esta não se abala. Mesmo assim, com a devastação, ainda possuímos alguns documentos curiosos que atestam a revivência do barroco durante fins do séc. XVIII e XIX." (p.25)

"De todos os templos que visitei no Estado (nos 35 municípios que conheço) quase todos são incaracterísticos e já não podem ser apontados como estilos. São testemunhas de várias tarefas de consertos onde as mais estranhas mãos desviaram de seu trilho a espírito arquitetural daquelas capelas seculares." (p.25)

"As Igrejas outras, Açú, Ceará – Mirim, Moçoró, Caicó, não têm história em suas paredes, vinte vezes alteradas. Tanto podiam estar no nordeste brasileiro como na Austrália. Nada têm de nós porque as despojaram de suas heranças de cem anos." (p.26)

"Onde podemos ver a sobrevivência do barroco e a justiça dos que o dizem ter sido o verdadeiro estilo religioso brasileiro, é nos portões dos Cemitérios que escaparam à fúria modernizadora dos estetas." (p.26)

"Um outro ponto melancólico é a substituição dos Santos de madeira pelos Santos de gesso e de massa, bonitos e róseos com uma lindeza extra-humano." (p.26)

"(...) Deixaram o destronado orago num altar lateral enquanto o novo assumia o posto de honra no altar-mor. O Povo, habituado com o primeiro, continua obstinadamente, a recorrer ao conhecido padroeiro, dando-lhe orações e pagando promessas." (p.26-27)

"(...) Um trabalho de madeira é sempre um esforço pessoal, direto, próprio. Fique feio ou deslumbrante, o caso é que é um produto da inteligência humana, sem o auxílio da máquina polidora. Um trabalho de gesso, cartão ou massa, sempre bonito, é sempre o resultado frio da máquina, produto igual, monótono em sua beleza, sem calor da mão humana, rude ou apta, mas sincera." (p.27)

[Termina a crônica afirmando]

"Se os Santos de madeira são impróprios para o Culto ao menos conservemo-los como objetos de Arte, Arte primitiva, tosca, iniciante, mas Arte fiel a si mesma." (p.27)

"Viajando o Sertão VII"

"Em Defesa Da Cozinha Sertaneja"

"A Cozinha sertaneja está decadente. Menos por sua própria essência do que pelo indesculpável acanhamento em mostrar-se. (...) O nosso sertanejo disfarça, esconde, mistifica sua culinária quando tem visitas. Crê ficar desonrado servindo coalhada com carne-de-sol, costela de carneiro com pirão de leite, paçoca com bananas, milho cozido, feijão verde, o mungunzá que o africano ensinou e a carne moqueada que ele aprendeu com o indígena.

Nada mais antipatriótico e desumano que esta modéstia criminosa. Nós devemos ter orgulho de nossa alimentação tradicional, formadora de rijos homens de outrora, vencedores da indiada, lutando com onças a facão e morrendo de velhos." (p.27)

"O problema da alimentação é participar direto do valor racial." (p.27)

"No sertão do Rio Grande do Norte a tendência é seguir o litoral no cosmopolitismo alimentar, quase sempre irracional e péssimo. Os tutanos de ‘corredor’ de boi que, misturados com rapadura, constituíram o mistério das supremas vitalidades masculinas, já não tem apreciadores. Não vi comer farinha com açúcar, sobremesa típica, nem angu de ovos, prato de crianças em idade escolar, superior ao Toddy ao QuaKer Oats." (p.28)

"Defendamos a cozinha secular que nos doou músculos serenos e forças gigantescas. Podemos ir melhorando, diminuindo a intensidade rústica de certos pratos históricos, mas não aboli-los do nosso sustento. É um desserviço à nossa nacionalização de cultura escrevermos em brasileiro e comermos à inglesa." (p.28)

"(...) eu comi patas de rã – para saber até onde ia o pedantismo alimentar do elegante. Mas relegar os nossos velhos, simples, deliciosos e históricos quitutes, alimentadores dos nossos avós, base de sua energia incrível, a um canto do fogão e dizê-los exilados das mesas e dos paladares, ah! isto, por todos os Santos do Céu protesto, protesto, protesto." (p.29)

"Viajando o Sertão VIII"

"Intelectualidade Sertaneja"

"(...) Não é apenas pela pilhéria oportuna e justa, que o matuto expressa sua inteligência. É, antes de tudo, por uma atitude de aparente resignação melancólica que nada mais esconde, como nos árabes, que uma força latente e irrefreável de obstinação invencível." (p.29)

"(...)distanciado do litoral onde se processava a mistura das culturas e a formação mental de cada geração, o sertanejo pode conservar o fácies imperturbável, a sensibilidade própria, o indumento típico, o vocabulário teimoso, como usavam seus maiores. Ainda agora encontramos, deliciados, os traços dessa inteligência mais irradiante que adquisitiva.

Como todos os primitivos, o sertanejo não tem o senso decorativo nem ama sensorialmente a Natureza. Seu encanto é pelo trabalho realizado por suas mão. Nisto reside seu manso orgulho de vencedor da Terra " (p.29)

"(...) A noção de Beleza para ele é a utilidade, o rendimento imediato, pronto e apto a transformar-se em função."(p.29)

"(...) Basta ver a ornamentação dos oratórios, os enfeites pintados por um ‘curioso’ local nas fachadas, os frisos dos cemitérios e a cimalha dos frontões das igrejas antigas. É tudo rapidamente sentido expressado num estilo nervoso e simples, sem subjetivismo, sem mundo-interior, sem quer dizer coisa alguma além das linhas materiais." (p.29)

[Percurso – Santa Cruz – Cabeço Branco – Serro Corá – São Romão – Angicos – Assú – Paraú – Pau dos Ferros]

"O erro é a tentativa de criar uma literatura sertaneja nos moldes duma literatura comum. Erro ainda escrever tal qual o sertanejo pronuncia. Uma literatura do Sertão deverá refletir fielmente a sintaxe local e, acima de tudo, a mentalidade ambiente que não é inteiramente a nossa. Verdade é que a rodovia assimilou o Sertão a tal ponto que o está tornando sem fisionomia. Mas ainda teremos uns anos antes que a terra perca seus atributos típicos." (p.30-31)

"Nada de deformação para efeito moral nem a mania de caricaturar o sertanejo, fazendo-o fábrica de anedotas e sua vida um tecido de facécias, tão ao jeito dos atores que ‘representam’ o nosso sertanejo no palco, vestindo-se à maneira do caipira fluminense ou jeca mineiro." (p. 31)

"Viajando o Sertão IX"

"Fundamentos da Família Sertaneja"

"O Sertão foi povoado, dos fins do séc. XVII para o correr do séc. XVIII, por gente fisicamente forte e etnicamente superior. Enfrentava os índios quem não tinha medo de morrer nem remorsos de matar. As famílias seguiam o chefe que ia fazer seu ‘curral’ nas terras sabiamente povoadas de paiacus, janduís, panatis, pégas, caicós, nômades, atrevidos, jarretando o gado e trucidando os brancos. O gado era o fixador." (p.31)

"Tivemos, pois, como fundamento da Família sertaneja, o homem pastoril, a feito às batalhas do campo, às necessidades das descobertas de novas pastagens." (p.31)

"(...) O meio de vida criou o tipo do fazendeiro pomposo do séc. XIX que, cem anos antes, era o dominador dos índios, caçando as caboclas à pata de cavalo para os haréns metendo-se em ‘raids’ extensos pelas matas e serras brutas, sitiando os currais nos lugares mais altos ou abrigados. A Casa-Grande surgiu com um centro polarizador." (p.31-32)

"Esses resultados dizem de que sangue valoroso saíra o sertanejo primitivo. Mestiço não coloniza nem mantém ação ininterrupta. É impulsivo, inteligente, apreendedor, mas dispersivo, arrebatado, original. Impossível sem uma energia em linha reta, sem desfalecimento e solução de continuidade, semear as fazendas em todo interior do Rio Grande do Norte, num cenário hostil, desde a natureza até o aborígine.

Os troncos seculares que foram replantados de Portugal pertenciam aos ‘homens-bons" ou à fidalguia das filhas, agricultores de S. Miguel, Terceira e Faial. Os Soares, Araújos, Bezerras, Medeiros, Raposo da Câmara, Pimentas, Fernandes, Queirós, Ferreira de Melo, Vieiras, Cunhas, Nogueiras, vinte outros nomes, vinham com a certeza do combate áspero contra o selvagem, contra a natureza sem adaptação às exigências do homem europeu contra maneiras de alimentação, indumento, viagem, o próprio passo com que se habituara no Minho, Trás os Montes ou Algarves. Eis por que diferenciamos o sertanejo etnicamente. Ele ficou, séculos, quase sem misturar-se."(p. 32)

"(...) pureza do veio comum e antigo." (p.32)

"Essas famílias tradicionais que dominam a regiões inteiras, distribuindo ordens com naturalidade feudal, fazendo justiça clandestina, olhando seus redeiros e moradores com membros da gens, elementos que devem obedecer e ser protegidos, são herdeiras diretas dos povoados, vitoriosos do índio, da seca, das feras e da solidão, plantadores de fazendas nos araxás das serras (...), núcleos de irradiação civilizadora e contínua." (p. 32-33)

"Viajando o Sertão X"

"Lembrança de Patu"

[Percurso – Santa Cruz – Cabeço Branco – Serro Corá – São Romão – Angicos – Assú – Paraú – Pau dos Ferros –Vila do Patu]

"Quando rodávamos para a vila do Patu ia eu lembrando Jenuíno Brilhante, o cangaceiro gentil-homem, admirado e senhorial como Robin Hood. Branco e de família conhecida, emaranhou-se nas tricas locais e acabou chefiando bandos e morando numa casa-de-pedras, no cimo da serra, onde me indicaram a trilha sinuosa e clara." (p.33)

"O individualismo em que foi criado o homem sertanejo, o uso das armas, facilidade de ação pessoal em vez da justiça, ambiente de luta, a literatura oral que só ilustra os feitos valorosos dos valentes (...), haloou Jenuíno Brilhante de glória." (p.33)

"Fomos ao pé-da-serra do Lima e daí a cavalo, visitar a Capelinha. (...)

A Capelinha, num rococó de simplicidade extrema e acolhedora, tem a parede coberta de ex-votos. (...) A maioria dos ex-votos denuncia chagas, feridas, esfoladuras que a poeira tornou purulentas. O número de aleijados é menor. Não vi casos de cegueira. A abundância de ex-votos, de forma hemi-esferoidal, chamou-me a atenção. É a falta de leite nas pobres mães sertanejas que explica a promessa. Aqueles pedaços informes de madeira são as mais comoventes e doces representações do amor materno pela saúde insegura da prole. (...)" (p.34)

"(...) Nossa Senhora dos Impossíveis é uma das devoções mais antigas e poderosas no sertão. Incontáveis romarias atravessam a serra para levar os tributos da Fé ao ‘vulto’ ingênuo da Santa." (p.34)

"(...) É uma Santa que espalha os milagres sem se afastar da primitiva rusticidade do sertanejo fiel. Ali, há séculos, multidões oram e são consoladas. Gerações inteiras passam por este altarzinho de três metros de largo, pequenino e insignificante, mas irradiador de tranqüilidade, de estímulo, de confiança e de ânimo. Aqui, velhos caçadores, vaqueiros veteranos da luta do campo, plantadores que os anos envelheceram, rezam ajoelhados, de mãos postas, hirtos e obstinados, recebendo a coragem de opor aos elementos naturais a fortaleza de uma resistência miraculosa." (p.35)

"Viajando o Sertão XI"

"Povoações"

"Na povoação de Vitória, município de Pau de Ferros, tive um ótimo informador na pessoa do Sr. Antônio Lopes, sertanejo vivo, inteligente, leitor de jornais e amigo de ‘prosas’.

Logo depois do jantar veio a mim, levou-me para uma vão de janela e ai, cercado de povo, interrogou-me sobre vários topônimos. Que é Moçoro? E Panati? Socó-boi? Fui respondendo e perguntando também. Ficamos amigos e ainda hei de passar a noite de 12 para 13 de junho em Vitória. Esta é a noite da Véspera de S. Antônio, padroeiro de Vitória (...)." (p.35)

"Viajando o Sertão XII"

"Virgolino Lampeão"

"Lampeão reina incontestavelmente na imaginação sertaneja. Devemos um grande bem ao hediondo bandido. Desmoralizou o tipo romântico do cangaceiro. Outrora todos os valentões, chefes de quadrilha, tinham atitudes simpáticas, gestos cativantes, ações generosas. Poupavam as crianças, respeitavam os lares, veneravam os velhos, faziam casamentos, cobravam dívidas a que os ricos recusavam pagamento, rasgavam processos forjados pelo mandonismo político. Lampeão acabou com a tradição de Jesuíno Brilhante, Adolfo Meia Noite (...). É malvado, ladrão, estuprador, incendiário, espalhando uma onda de perversidade inútil e de malvadeza congênita onde passa." (p.37)

"(...) Em Caraúbas narraram-me pormenores interessantes de sua psique."(p.38)

[Em janeiro de 1929, Câmara Cascudo afirma ter estado na povoação de ‘Gavião’, onde soube da passagem de Lampeão em sua marcha sobre Moçoró. "Nunca mais Moçoró esquecerá aquele tremendo 13 de junho de 1927." (p.38)]

"O cangaceiro não é um elemento do sertão. Não vem da seca, da justiça local, da mestiçagem, da educação, do uso das armas. Existe em todos os países e regiões mais diversas. Na inóspita Mauritânia e na alagada China, (...) França (...), São Paulo (...) e em Portugal (...), nas cidades tentaculares e nas povoações minúsculas, repontam esses tipos de inadaptação, somas de todos os fatores, vértice para onde convergem as grandezas das taras, tendências, ineducações e impulsos." (p.39)

"Viajando o Sertão XIII"

"Classicismo Sertanejo"

"O sertanejo não fala errado. Fala diferente de nós apenas. Sua prosódia, construção gramatical e vocabulário não são atuais nem faltos de lógica. O sertanejo usa , em proporção séria, o português do séc. XVI, da era do descobrimento. Há poucos anos é que a rodovia conseguiu prendê-lo, em massa, ao litoral e sua linguagem se esta modificando ao contato do nosso palavrear brasileiro, totalmente diverso." (p.39)

" (...) Um estudo urgente impor-se-ia para recolher centenas de vocábulos clássicos ainda manejados usualmente. Daqui a algum tempo o sertanejo falará como todos nós. O ambiente, renovado pelos jornais, escolas, visitas e viagens, atravessa um período de transformação rápida." (p.39)

"Quando um sertanejo diz ‘filosomia’, em vez de ‘fisionomia’, nós achamos uma graça imensa, Luiz de Camões, o hiper-clássico das nossas antologias escolares, dá um exemplo(...)." (p.40)

"O sertanejo teima em pronunciar ‘Anrique’ por Henrique. Raros lembram que o lusitano conheceu Henrique através do francês (‘An-ri’). Assim assinava o Cardeal Rei Dom Anrique e todos os quinhentistas não grafaram doutra maneira.

O doutíssimo poeta Doutor Antônio Ferreira, (1528-1569) utilizava vocabulário irmão, de pai e mãe, do nosso sertanejo. (...)" (p.40)

"O Dicionário de Morais registra ‘graça’ como sinônimo de ‘nome’. Como é sua ‘graça’, frase tão tradicional, não destoa da regra de sã doutrina verbal." (p.41)

"Não convém rotular de português – errado o linguajar do nosso sertanejo. Em geral o povo é conservador." (p.41)

"Viajando o Sertão XIV"

"O sertanejo não conhece o plural"

"O sertanejo tem algumas centenas de arcaísmos empregados vivamente em seu dialetar. O africanismo é menor e a parte do índio só se torna sensível denominando objetos ou na toponímia." (p.41)

"Nós sabemos que o índio foi o primeiro trabalhador escravo ou o companheiro militar aliado ao colonizador. Sua fixação, nas reduções jesuíticas, influiu pouco nos costumes mas sua permanência nos sertões, ao lado dos grandes sesmeiros e criadores ou acompanhando as bandeiras (...), foi grande e larga. Não somente uma vasta toponímia positiva a área geográfica, em que o índio residiu, como também lembramos a multidão dos vocábulos herdados dos antigos senhores do sertão. Forçosamente o fenômeno de assimilação subiria das camadas mais em contato com a indiada para os chefes de currais e mestre de campo. A população, em diária aproximação com o índio cativo em guerras, e obrigado aos trabalhos da agricultura, ou simplesmente assoldado para as campanhas guerreiras, dele receberia um vocabulário híbrido, português-tupi, com seus modismos, peculiaridades e exotismo gramaticais. O caso da ausência do plural seria parte deste patrimônio verbal que ainda vive." (p.43)

"Viajando o Sertão XV"

"Música Sertaneja"

"Música sertaneja, no sentido expresso do termo, nunca existiu. Para dançar dançam o que se dança no litoral. Valsas, polcas, xotes, quadrilhas, tangos, agora maxixes, fox (...)." (p.44)

"(...) Para a sociedade, rica, abastada ou mediana, não há maior desdouro que falar em sambas. Samba (...) reunião festiva. (...) O samba primitivo era uma simples dança de roda, herança do índio em suas danças coletivas, mas sem mulheres. O português colocou o ponto, a parada com a saudação (...) e também trouxe o elemento feminino para o meio. O negro colaborou com a umbigada. Samba vem de samba, que quer dizer umbigo." (p.44)

"A impressão geral da Música sertaneja só se pode ter ouvindo os cantadores." (p.44)

"Os temas são deliciosamente simples. A maior influência portuguesa ainda é notada nas rodas infantis. O negro e o índio são responsáveis pelo ritmo profundo. (...) Mas o negro, todos sabem, é mais escravo do ritmo. Veio da percussão." (p.45)

[Se refere a Mário de Andrade como "(...) erudito professor do conservatório de São Paulo" (p.45) – cita "Ensaios sobre a Música brasileira".]

"Viajando o Sertão XVI"

"Decadência da ‘Cantoria’"

" O sertão perdeu seus cantadores. A vida transformou-se. As rodovias levaram facilmente as charangas dum para outro povoado. As vitrolas clangoram os foxs (...). As meninas , que conheci espiando os ‘home’ por detrás (...) das portas, (...) dançando a meia légua de distancia do par, hoje usam o cabelinho cortado, a boca em bico-de-lacre, o mesmo palavreado das tango-girls do Aéreo Club e Natal Club. Numa viagem, em janeiro de 1928, eu mostrava a Mário de Andrade nos arruados do baixo-Açu, crianças com bochechinhas pintadas de papel – encarnado, fingindo rouge. Encontrei jornais do Rio e S. Paulo em toda a parte. O sertão descaracteriza-se. É natural que o cantador vá morrendo também." (p.46)

"(...) A vaquejada, velha escola de agilidade, de afoiteza, de arrojo, de valentia, de presença de espírito e decisão pessoal está desaparecendo. Para substituir, junto aos moços, esta tradição de bravura, vou encontrando, melancolicamente, campos de foot-ball ..." (p.47)

"(...) Quais são os mestres da Cantoria de agora? Preto-Limão, Serra Azul (...) , não deixaram herdeiros no trono humilde em que dominavam o sertão (...) ... Nada mais resta dessa literatura oral, preciosa e milionária de curiosidades (...) Toda essa seiva borbulhante que perfumou dois séculos de vida livre e bárbara, secou para sempre a nascente puríssima?" (p.47)

"É fácil para qualquer folclorista apontar o cuidado de todos os governos para recolher sua literatura oral. Academias, sociedades financiadas oficialmente, comissões, caravanas, percorrem todas as regiões registrando tudo, fixando modismos, guardando as músicas, fazendo um repositório para corresponder as necessidades futuras, quando as terras pitorescas ficarem sem as peculiaridades lindas.

Nós nunca lembramos oficialmente desta riqueza que se esta acabando. Há um sorriso superior de homem impotente, desdenhoso e sábio, quando ouve a frescura dos versos sertanejos. Pobre superioridade, triste desdém misérrima sabedoria..." (p.47)

"(...) Possuímos os estudos de Gustavo Barroso, o Mestre, João Ribeiro, Lindolfo Gomes, Basílio de Magalhães, Alberto de Faria, mais uns vinte ilustres. Gustavo delimitou os ciclos mas sua vida lançou-o para outras atividades. O sertão exige uma existência inteira voltada ao seu amor (...)."

"Viajando o Sertão XVII"

"Carnaúbas"

"Em 1929 vim de Macau para Açu atravessando o vale pontilhado de casinhas sorridentes e cheio de alegria. Sobressaía a cor encarnada, índice de mentalidade primitiva, arrebatada, impulsiva, sexual. Uma população intensa estirava-se, em léguas fartas, erguendo os ranchos numa continuidade que dava a ilusão duma imensa cidade, dum acampamento de várias raças, com indumentária peculiar. (...) A carnaúba explicava tudo aquilo.

Agora conheci o brejo do Apodi. O olhar se espraia, intérmino, naquele cenário verde-lodo, pesado e morno de fecundidade. O Dr. Mário Câmara fazia parar o auto, empolgado com a paisagem absorvente. (...) A aragem fria da chapada descia, silvando, para o cadinho ardente onde uma população alacre e viva se fixara, para existir com a vida daquelas árvores ásperas e lindas." (p.48-49)

"Não há nenhum auxilio para a criação de novos carnaubais. É uma indústria que esta despertando interesse. (...) E nós continuamos a produzir como a um século, derribando as árvores existentes, esperando que a terra nos dê, maternalmente, o que não sabemos conservar? ..." (p.50-51)

"Viajando o Sertão XVIII"

"Resumo dos temas"

Traça todo o percurso da viagem.

[Natal – Macaíba – Santa Cruz – Cerrô Corá – Angicos – São Romão – Açu – Paraú – Augusto Severo – Caraúbas – Patú – Almino Afonso – Lucrécia - Boa Esperança – João Pessoa – Vitória – Luiz Gomes – José da Penha – Pau dos Ferros – Itaú – Malhada Vermelha – Apodi – São Sebastião – Mossoró – Porto Franco – Areia Branca]

"(...) o alemão Wilherm Ksinsik, admirador de Hitler, sabendo várias coisas com quem converso integralisticamente durante quase toda estada, até o auf wierdenseher final." (p.51)

"(...) evoco genealogias (...)" (p.52)

"(...) Francisco Ferreira (...) , pergunta-me pelo Integralismo e está mais bem informado que os nossos inefáveis ironistas." (p.52)

"(...) Areia Branca. Bem diversa da que conheci na minha meninice." (p.54)

  • Tese central:
  • A relação entre Tradição/Moderno desencadeada pelo avanço do Litoral para o Sertão; o Litoral marcado pelo cosmopolitismo, por constantes transformações e o Sertão caracterizado pela permanência de práticas tradicionais, que tendem a desaparecer por completo, justamente, pela influência cada vez mais crescente de elementos da cidade, é recorrente. A perda da "fisionomia" do Sertão é o que mais chama atenção de Cascudo no decorrer de sua viagem.
  • A influência das duas raças (Portugueses e Índios) na formação do homem sertanejo. O elemento africano representou uma influência quase nula na formação e nos costumes e práticas do homem sertanejo. ("Participação" Indígena / "Permanência" Portuguesa)
  • A importância dada a temática da cultura popular. Cascudo transita tanto no espaço da política quanto no espaço da cultura popular, mas parece dar mais relevância, em seu relato, ao segundo espaço.
  • Memória individual – "Memória de menino sertanejo." – Convivência.
  • Povo e Cultura Popular como elementos de conservação e permanência da Tradição.
  • Integralismo – Utilização na narrativa dos elementos que fundamentam a doutrina integralista – "Tradição/ Família/ Pátria - Religião". Crítica ao "estrangeirismo" e aos hábitos cosmopolitas. Valorização dos costumes brasileiros. Utilização de expressões, como por exemplo, "pureza do veio comum"(p.32) e "sangue valoroso"(p.32), que remetem a uma postura eugênica com relação a Raça e a Cultura.
  • Crítica com relação a substituição do Feito pelo Fabricado.

 



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