.
"No dia 18 o Interventor
chegou a vila de Augusto Severo (...)."
"O Dr. Mário Camara teve
uma magnífica recepção por parte dos mais significativos elementos
sociais de Augusto Severo (...)."
"Às 16 horas deu-se a
partida falando o Dr. Câmara Cascudo, despedindo-se da terra de seus
pais e avós e evocando as famílias tradicionais dos Melos, Veras e
Jacomes, sendo demoradamente aplaudido."
"A viagem para Caraúbas
retardou-se pelo estado do caminho (...)."
"Realizou-se o banquete
assistido pelo escol local. (...) Dr. Mário Camara , (...) pediu ao Dr.
Câmara Cascudo que, em nome dos presentes da comitiva, saudasse a
Família de Caraúbas, ali representadas pelos seus mais legítimos
elementos. O Dr. Câmara Cascudo (...) levantando sua taça em saudação à
mulher caraubense, mãe, esposa e filha, tecedeira de felicidade,
artífice da paz, mãe de soldados e de marinheiros e de lavradores, seiva
de fé que se perpetua na coragem com que o sertanejo enfrenta e vence a
natureza, corrigindo-lhe a fisionomia (...)."
05/06/ 1934
"Viajando o Sertão (IV)"
[Percurso – Santa Cruz –
Cabeço Branco – Serro Corá – São Romão – Angicos – Assú - Paraú]
"Rodamos para Paraú,
povoação que bati inteira com os pés infantis, há vinte anos. Corríamos
em campos suaves, ladeados de vegetação fina e verde. Conversa-se em
plantas têxteis, aproveitamento de fibras. Eu penso em Assú. Assú era a
cidade literária da Província como Natal era a capital política. (...)
Van Gennep demonstrou isto. Assú era, literariamente, o mais vivo centro
da Província até os anos da República. Depois as andorinhas políticas
cortaram os ares (...) para outros quadrantes. Assú ficou deserto e
cheio de recordações (...). Lembro-me do velho Lucas Vanderlei,
orgulhoso do Assú, recordando-lhe o passado. Tempo velho. (...) o
caminho não permite um ‘memorial day’ assuense."
"O auto corre, galga os
primeiros metros, num impulso rouco, pára trepidando (...). Um a um os
autos se detém. Eu aproveito para pular a cerca e ir ver um milharal,
imenso, (...), cheirando a São João, prometendo o cardápio sem par do
nordeste. No lamaçal luta-se cortando mato para evitar o piso falso.
Empurra-se. Conversa-se. Finalmente, num bramido de motores enfurecidos,
os autos arrancam, atirando lama e folhas pelo ar. Passam. Eu ando a pé
e vou retomar meu lugar adiante. A um dos caboclos que ajudaram a
desvencilhar os carros, pergunto o nome do local. Tenho uma resposta que
é uma ironia: – Isto aqui é ‘corredor da Fortuna’!..."
"A festa de Paraú é para
mim um sopro que vem de longe (...). Vários homens eram meninos do meu
tempo de irresponsabilidade jurídica. Dona Maroca Véras, Silvestre, Luiz
Gondim, meu primo, a fama do meu nascimento em terras de Campo Grande e
daí a aclamação para que eu falasse em nome da saudade que o ambiente
revigora, tudo reapareceu, súbito numa vida poderosa."
"Depois do jantar fico
dentro do automóvel parado com Alcides Franco falando sobre
Integralismo, liberalismo e república democrática. Para mim é um encanto
narrar como Plínio Salgado começou com nove rapazes e tem duzentos mil
em dois anos, com o silêncio dos jornais e todas as baterias do ridículo
assentadas contra ele."
Assina desta forma:
L. da C. C.
"Viajando o Sertão (V)"
"Os Negros"
"Uma surpresa no sertão é
o quase desaparecimento do Negro. Raros os negros-fulos e ainda mais o
retinto. Este não o vi nos 1.307 quilômetros viajados." (p.22)
"(...)Regiões inteiras
corremos sem um herdeiro dos velhos trabalhadores escravos. A lenda da
"mestiçagem nordestina" esta pedindo uma verificação para desmentido
completo. Nós tivemos sempre uma percentagem negra inferior aos outros
elementos étnicos." (p.22)
"(...) como notou Roquete
Pinto a ligação já se fez entre o branco e a mulata-mestiça, clareando o
rebento.
Mas para nós do Rio
Grande do Norte, ainda há outra explicação histórica. Nunca tivemos
vasta escravaria." (p.23)
"Sei eu que
posteriormente, na época das altas do açúcar, o escravo cresceu entre
nós. Mas não se fixou no sertão" (p.23)
" Em resumo, nós não
tivemos em escala progressiva, as indústrias que justificavam a vasta
escravaria. Não tínhamos minas nem algodoais que pedissem levas e levas
humanas. Mesmo o açúcar influía pouco. A massa negra adensava-se nos
vales. O sertão, com a seca de 1877, despojou-se dos escravos que
possuía, indo-os vender em Moçoró. O espetáculo do mercado de carne
cristã revoltou os moçoroenses.
Para o sertão ficou o
escravo-de-confiança, o negro fiel, companheiro de trabalho. Ficou
também a mãe-negra, mãe-de-leite, contadeira de história de Trancoso e
responsável pelo ‘pavor cósmico’ de que falava Graça Aranha.
A explicação maior da
ausência de negros nas terras sertanejas, ausência ou carência, é o fato
de o sertão manter a tradição da gadaria, a criação dos currais de gado,
origem de sua força destreza e agilidade. (...) O negro não era tão
preciso num cavalo quanto era dentro dum canavial ou apanhando a baga de
café nas terras roxas." (p.23-24)
[Afirma ter publicado na
"Revista Nova"(São Paulo, 15/04/1931, n. 1) um trabalho a respeito da
Evolução econômica do Rio Grande do Norte e a escravaria.]
"(...)Cito para que não
se julgue de ter eu só agora atinado com o coeficiente branco como
dominante no Rio Grande do Norte." (p.24)
"Batendo tantos
municípios, em companhia do Interventor, por isto mesmo, esperava eu que
a visita atraísse todos elementos sociais e desse margem a uma
observação que seria impossível noutras condições. Via eu grandes massas
assistindo a festas ou mirando curiosamente o governante do Estado. O
elemento negro só se destacava por sua insignificância." (p.24)
"(...) O irmão Negro
desaparece ..." (p.24)
"Viajando o Sertão (VI)"
"Igrejas e Arte
Religiosa"
"(...) A mania da
remodelação, para pior, ataca os nervos de muita gente bem intencionada.
Creio firmemente que, na futura reforma dos Seminários brasileiros,
reforma com as luzes dum Dom Xavier de Matos, seria indispensável a
cadeira de Arte Religiosa Brasileira para ensinar aos nossos párocos um
mais profundo amor pelos monumentos legados pelas gerações
desaparecidas. Sirva de exemplo o altar da Igreja de Serra Negra, em
madeira talhada, simples e emocionante prova de fé, quebrado,
inutilizado, destruído, para ser substituído por um altar de tijolo ou
cimento, sem significação, e história." (p.24)
"Durante o séc. XIX quase
todas as Igrejas foram ‘remodeladas’, raspados seus frontispícios
venerados, riscadas em sua fisionomia própria e coberta de cal e
enfeites, de acordo com a inteligência do tempo. Ninguém lembrou a
necessidade de conservar a fachada tal como estava e fazer adaptações
interiores, respeitando os altares quando dignos de mantença. Igreja é
prova de Fé e esta não se abala. Mesmo assim, com a devastação, ainda
possuímos alguns documentos curiosos que atestam a revivência do barroco
durante fins do séc. XVIII e XIX." (p.25)
"De todos os templos que
visitei no Estado (nos 35 municípios que conheço) quase todos são
incaracterísticos e já não podem ser apontados como estilos. São
testemunhas de várias tarefas de consertos onde as mais estranhas mãos
desviaram de seu trilho a espírito arquitetural daquelas capelas
seculares." (p.25)
"As Igrejas outras, Açú,
Ceará – Mirim, Moçoró, Caicó, não têm história em suas paredes, vinte
vezes alteradas. Tanto podiam estar no nordeste brasileiro como na
Austrália. Nada têm de nós porque as despojaram de suas heranças de cem
anos." (p.26)
"Onde podemos ver a
sobrevivência do barroco e a justiça dos que o dizem ter sido o
verdadeiro estilo religioso brasileiro, é nos portões dos Cemitérios que
escaparam à fúria modernizadora dos estetas." (p.26)
"Um outro ponto
melancólico é a substituição dos Santos de madeira pelos Santos de gesso
e de massa, bonitos e róseos com uma lindeza extra-humano." (p.26)
"(...) Deixaram o
destronado orago num altar lateral enquanto o novo assumia o posto de
honra no altar-mor. O Povo, habituado com o primeiro, continua
obstinadamente, a recorrer ao conhecido padroeiro, dando-lhe orações e
pagando promessas." (p.26-27)
"(...) Um trabalho de
madeira é sempre um esforço pessoal, direto, próprio. Fique feio ou
deslumbrante, o caso é que é um produto da inteligência humana, sem o
auxílio da máquina polidora. Um trabalho de gesso, cartão ou massa,
sempre bonito, é sempre o resultado frio da máquina, produto igual,
monótono em sua beleza, sem calor da mão humana, rude ou apta, mas
sincera." (p.27)
[Termina a crônica
afirmando]
"Se os Santos de madeira são impróprios
para o Culto ao menos conservemo-los como objetos de Arte, Arte
primitiva, tosca, iniciante, mas Arte fiel a si mesma." (p.27)
"Viajando o Sertão VII"
"Em Defesa Da Cozinha
Sertaneja"
"A Cozinha sertaneja está
decadente. Menos por sua própria essência do que pelo indesculpável
acanhamento em mostrar-se. (...) O nosso sertanejo disfarça, esconde,
mistifica sua culinária quando tem visitas. Crê ficar desonrado servindo
coalhada com carne-de-sol, costela de carneiro com pirão de leite,
paçoca com bananas, milho cozido, feijão verde, o mungunzá que o
africano ensinou e a carne moqueada que ele aprendeu com o indígena.
Nada mais antipatriótico
e desumano que esta modéstia criminosa. Nós devemos ter orgulho de nossa
alimentação tradicional, formadora de rijos homens de outrora,
vencedores da indiada, lutando com onças a facão e morrendo de velhos."
(p.27)
"O problema da
alimentação é participar direto do valor racial." (p.27)
"No sertão do Rio Grande
do Norte a tendência é seguir o litoral no cosmopolitismo alimentar,
quase sempre irracional e péssimo. Os tutanos de ‘corredor’ de boi que,
misturados com rapadura, constituíram o mistério das supremas
vitalidades masculinas, já não tem apreciadores. Não vi comer farinha
com açúcar, sobremesa típica, nem angu de ovos, prato de crianças em
idade escolar, superior ao Toddy ao QuaKer Oats." (p.28)
"Defendamos a cozinha
secular que nos doou músculos serenos e forças gigantescas. Podemos ir
melhorando, diminuindo a intensidade rústica de certos pratos
históricos, mas não aboli-los do nosso sustento. É um desserviço à nossa
nacionalização de cultura escrevermos em brasileiro e comermos à
inglesa." (p.28)
"(...) eu comi patas de
rã – para saber até onde ia o pedantismo alimentar do elegante. Mas
relegar os nossos velhos, simples, deliciosos e históricos quitutes,
alimentadores dos nossos avós, base de sua energia incrível, a um canto
do fogão e dizê-los exilados das mesas e dos paladares, ah! isto, por
todos os Santos do Céu protesto, protesto, protesto." (p.29)
"Viajando o Sertão VIII"
"Intelectualidade
Sertaneja"
"(...) Não é apenas pela
pilhéria oportuna e justa, que o matuto expressa sua inteligência. É,
antes de tudo, por uma atitude de aparente resignação melancólica que
nada mais esconde, como nos árabes, que uma força latente e irrefreável
de obstinação invencível." (p.29)
"(...)distanciado do
litoral onde se processava a mistura das culturas e a formação mental de
cada geração, o sertanejo pode conservar o fácies imperturbável, a
sensibilidade própria, o indumento típico, o vocabulário teimoso, como
usavam seus maiores. Ainda agora encontramos, deliciados, os traços
dessa inteligência mais irradiante que adquisitiva.
Como todos os primitivos,
o sertanejo não tem o senso decorativo nem ama sensorialmente a
Natureza. Seu encanto é pelo trabalho realizado por suas mão. Nisto
reside seu manso orgulho de vencedor da Terra " (p.29)
"(...) A noção de Beleza
para ele é a utilidade, o rendimento imediato, pronto e apto a
transformar-se em função."(p.29)
"(...) Basta ver a
ornamentação dos oratórios, os enfeites pintados por um ‘curioso’ local
nas fachadas, os frisos dos cemitérios e a cimalha dos frontões das
igrejas antigas. É tudo rapidamente sentido expressado num estilo
nervoso e simples, sem subjetivismo, sem mundo-interior, sem quer dizer
coisa alguma além das linhas materiais." (p.29)
[Percurso – Santa Cruz –
Cabeço Branco – Serro Corá – São Romão – Angicos – Assú – Paraú – Pau
dos Ferros]
"O erro é a tentativa de
criar uma literatura sertaneja nos moldes duma literatura comum. Erro
ainda escrever tal qual o sertanejo pronuncia. Uma literatura do Sertão
deverá refletir fielmente a sintaxe local e, acima de tudo, a
mentalidade ambiente que não é inteiramente a nossa. Verdade é que a
rodovia assimilou o Sertão a tal ponto que o está tornando sem
fisionomia. Mas ainda teremos uns anos antes que a terra perca seus
atributos típicos." (p.30-31)
"Nada de deformação para
efeito moral nem a mania de caricaturar o sertanejo, fazendo-o fábrica
de anedotas e sua vida um tecido de facécias, tão ao jeito dos atores
que ‘representam’ o nosso sertanejo no palco, vestindo-se à maneira do
caipira fluminense ou jeca mineiro." (p. 31)
"Viajando o Sertão IX"
"Fundamentos da Família
Sertaneja"
"O Sertão foi povoado,
dos fins do séc. XVII para o correr do séc. XVIII, por gente fisicamente
forte e etnicamente superior. Enfrentava os índios quem não tinha medo
de morrer nem remorsos de matar. As famílias seguiam o chefe que ia
fazer seu ‘curral’ nas terras sabiamente povoadas de paiacus, janduís,
panatis, pégas, caicós, nômades, atrevidos, jarretando o gado e
trucidando os brancos. O gado era o fixador." (p.31)
"Tivemos, pois, como
fundamento da Família sertaneja, o homem pastoril, a feito às batalhas
do campo, às necessidades das descobertas de novas pastagens." (p.31)
"(...) O meio de vida
criou o tipo do fazendeiro pomposo do séc. XIX que, cem anos antes, era
o dominador dos índios, caçando as caboclas à pata de cavalo para os
haréns metendo-se em ‘raids’ extensos pelas matas e serras brutas,
sitiando os currais nos lugares mais altos ou abrigados. A Casa-Grande
surgiu com um centro polarizador." (p.31-32)
"Esses resultados dizem
de que sangue valoroso saíra o sertanejo primitivo. Mestiço não coloniza
nem mantém ação ininterrupta. É impulsivo, inteligente, apreendedor, mas
dispersivo, arrebatado, original. Impossível sem uma energia em linha
reta, sem desfalecimento e solução de continuidade, semear as fazendas
em todo interior do Rio Grande do Norte, num cenário hostil, desde a
natureza até o aborígine.
Os troncos seculares que
foram replantados de Portugal pertenciam aos ‘homens-bons" ou à
fidalguia das filhas, agricultores de S. Miguel, Terceira e Faial. Os
Soares, Araújos, Bezerras, Medeiros, Raposo da Câmara, Pimentas,
Fernandes, Queirós, Ferreira de Melo, Vieiras, Cunhas, Nogueiras, vinte
outros nomes, vinham com a certeza do combate áspero contra o selvagem,
contra a natureza sem adaptação às exigências do homem europeu contra
maneiras de alimentação, indumento, viagem, o próprio passo com que se
habituara no Minho, Trás os Montes ou Algarves. Eis por que
diferenciamos o sertanejo etnicamente. Ele ficou, séculos, quase sem
misturar-se."(p. 32)
"(...) pureza do veio
comum e antigo." (p.32)
"Essas famílias
tradicionais que dominam a regiões inteiras, distribuindo ordens com
naturalidade feudal, fazendo justiça clandestina, olhando seus redeiros
e moradores com membros da gens, elementos que devem obedecer e ser
protegidos, são herdeiras diretas dos povoados, vitoriosos do índio, da
seca, das feras e da solidão, plantadores de fazendas nos araxás das
serras (...), núcleos de irradiação civilizadora e contínua." (p. 32-33)
"Viajando o Sertão X"
"Lembrança de Patu"
[Percurso – Santa Cruz –
Cabeço Branco – Serro Corá – São Romão – Angicos – Assú – Paraú – Pau
dos Ferros –Vila do Patu]
"Quando rodávamos para a
vila do Patu ia eu lembrando Jenuíno Brilhante, o cangaceiro
gentil-homem, admirado e senhorial como Robin Hood. Branco e de família
conhecida, emaranhou-se nas tricas locais e acabou chefiando bandos e
morando numa casa-de-pedras, no cimo da serra, onde me indicaram a
trilha sinuosa e clara." (p.33)
"O individualismo em que
foi criado o homem sertanejo, o uso das armas, facilidade de ação
pessoal em vez da justiça, ambiente de luta, a literatura oral que só
ilustra os feitos valorosos dos valentes (...), haloou Jenuíno Brilhante
de glória." (p.33)
"Fomos ao pé-da-serra do
Lima e daí a cavalo, visitar a Capelinha. (...)
A Capelinha, num rococó
de simplicidade extrema e acolhedora, tem a parede coberta de ex-votos.
(...) A maioria dos ex-votos denuncia chagas, feridas, esfoladuras que a
poeira tornou purulentas. O número de aleijados é menor. Não vi casos de
cegueira. A abundância de ex-votos, de forma hemi-esferoidal, chamou-me
a atenção. É a falta de leite nas pobres mães sertanejas que explica a
promessa. Aqueles pedaços informes de madeira são as mais comoventes e
doces representações do amor materno pela saúde insegura da prole.
(...)" (p.34)
"(...) Nossa Senhora dos
Impossíveis é uma das devoções mais antigas e poderosas no sertão.
Incontáveis romarias atravessam a serra para levar os tributos da Fé ao
‘vulto’ ingênuo da Santa." (p.34)
"(...) É uma Santa que
espalha os milagres sem se afastar da primitiva rusticidade do sertanejo
fiel. Ali, há séculos, multidões oram e são consoladas. Gerações
inteiras passam por este altarzinho de três metros de largo, pequenino e
insignificante, mas irradiador de tranqüilidade, de estímulo, de
confiança e de ânimo. Aqui, velhos caçadores, vaqueiros veteranos da
luta do campo, plantadores que os anos envelheceram, rezam ajoelhados,
de mãos postas, hirtos e obstinados, recebendo a coragem de opor aos
elementos naturais a fortaleza de uma resistência miraculosa." (p.35)
"Viajando o Sertão XI"
"Povoações"
"Na povoação de Vitória,
município de Pau de Ferros, tive um ótimo informador na pessoa do Sr.
Antônio Lopes, sertanejo vivo, inteligente, leitor de jornais e amigo de
‘prosas’.
Logo depois do jantar
veio a mim, levou-me para uma vão de janela e ai, cercado de povo,
interrogou-me sobre vários topônimos. Que é Moçoro? E Panati? Socó-boi?
Fui respondendo e perguntando também. Ficamos amigos e ainda hei de
passar a noite de 12 para 13 de junho em Vitória. Esta é a noite da
Véspera de S. Antônio, padroeiro de Vitória (...)." (p.35)
"Viajando o Sertão XII"
"Virgolino Lampeão"
"Lampeão
reina incontestavelmente na imaginação sertaneja. Devemos um grande bem
ao hediondo bandido. Desmoralizou o tipo romântico do cangaceiro.
Outrora todos os valentões, chefes de quadrilha, tinham atitudes
simpáticas, gestos cativantes, ações generosas. Poupavam as crianças,
respeitavam os lares, veneravam os velhos, faziam casamentos, cobravam
dívidas a que os ricos recusavam pagamento, rasgavam processos forjados
pelo mandonismo político. Lampeão acabou com a tradição de Jesuíno
Brilhante, Adolfo Meia Noite (...). É malvado, ladrão, estuprador,
incendiário, espalhando uma onda de perversidade inútil e de malvadeza
congênita onde passa." (p.37)
"(...) Em Caraúbas
narraram-me pormenores interessantes de sua psique."(p.38)
[Em janeiro de 1929,
Câmara Cascudo afirma ter estado na povoação de ‘Gavião’, onde soube da
passagem de Lampeão em sua marcha sobre Moçoró. "Nunca mais Moçoró
esquecerá aquele tremendo 13 de junho de 1927." (p.38)]
"O cangaceiro não é um
elemento do sertão. Não vem da seca, da justiça local, da mestiçagem, da
educação, do uso das armas. Existe em todos os países e regiões mais
diversas. Na inóspita Mauritânia e na alagada China, (...) França (...),
São Paulo (...) e em Portugal (...), nas cidades tentaculares e nas
povoações minúsculas, repontam esses tipos de inadaptação, somas de
todos os fatores, vértice para onde convergem as grandezas das taras,
tendências, ineducações e impulsos." (p.39)
"Viajando o Sertão XIII"
"Classicismo Sertanejo"
"O sertanejo não fala
errado. Fala diferente de nós apenas. Sua prosódia, construção
gramatical e vocabulário não são atuais nem faltos de lógica. O
sertanejo usa , em proporção séria, o português do séc. XVI, da era do
descobrimento. Há poucos anos é que a rodovia conseguiu prendê-lo, em
massa, ao litoral e sua linguagem se esta modificando ao contato do
nosso palavrear brasileiro, totalmente diverso." (p.39)
" (...) Um estudo urgente
impor-se-ia para recolher centenas de vocábulos clássicos ainda
manejados usualmente. Daqui a algum tempo o sertanejo falará como todos
nós. O ambiente, renovado pelos jornais, escolas, visitas e viagens,
atravessa um período de transformação rápida." (p.39)
"Quando um sertanejo diz
‘filosomia’, em vez de ‘fisionomia’, nós achamos uma graça imensa, Luiz
de Camões, o hiper-clássico das nossas antologias escolares, dá um
exemplo(...)." (p.40)
"O sertanejo teima em
pronunciar ‘Anrique’ por Henrique. Raros lembram que o lusitano conheceu
Henrique através do francês (‘An-ri’). Assim assinava o Cardeal Rei Dom
Anrique e todos os quinhentistas não grafaram doutra maneira.
O doutíssimo poeta Doutor
Antônio Ferreira, (1528-1569) utilizava vocabulário irmão, de pai e mãe,
do nosso sertanejo. (...)" (p.40)
"O Dicionário de Morais
registra ‘graça’ como sinônimo de ‘nome’. Como é sua ‘graça’, frase tão
tradicional, não destoa da regra de sã doutrina verbal." (p.41)
"Não convém rotular de
português – errado o linguajar do nosso sertanejo. Em geral o povo é
conservador." (p.41)
"Viajando o Sertão XIV"
"O sertanejo não conhece
o plural"
"O sertanejo tem algumas
centenas de arcaísmos empregados vivamente em seu dialetar. O
africanismo é menor e a parte do índio só se torna sensível denominando
objetos ou na toponímia." (p.41)
"Nós sabemos que o
índio foi o primeiro trabalhador escravo ou o companheiro militar aliado
ao colonizador. Sua fixação, nas reduções jesuíticas, influiu pouco nos
costumes mas sua permanência nos sertões, ao lado dos grandes sesmeiros
e criadores ou acompanhando as bandeiras (...), foi grande e larga. Não
somente uma vasta toponímia positiva a área geográfica, em que o índio
residiu, como também lembramos a multidão dos vocábulos herdados dos
antigos senhores do sertão. Forçosamente o fenômeno de assimilação
subiria das camadas mais em contato com a indiada para os chefes de
currais e mestre de campo. A população, em diária aproximação com o
índio cativo em guerras, e obrigado aos trabalhos da agricultura, ou
simplesmente assoldado para as campanhas guerreiras, dele receberia um
vocabulário híbrido, português-tupi, com seus modismos, peculiaridades e
exotismo gramaticais. O caso da ausência do plural seria parte deste
patrimônio verbal que ainda vive." (p.43)
"Viajando o Sertão XV"
"Música Sertaneja"
"Música sertaneja,
no sentido expresso do termo, nunca existiu. Para dançar dançam o que se
dança no litoral. Valsas, polcas, xotes, quadrilhas, tangos, agora
maxixes, fox (...)." (p.44)
"(...) Para a sociedade,
rica, abastada ou mediana, não há maior desdouro que falar em sambas.
Samba (...) reunião festiva. (...) O samba primitivo era uma simples
dança de roda, herança do índio em suas danças coletivas, mas sem
mulheres. O português colocou o ponto, a parada com a saudação (...) e
também trouxe o elemento feminino para o meio. O negro colaborou com a
umbigada. Samba vem de samba, que quer dizer umbigo." (p.44)
"A impressão geral da
Música sertaneja só se pode ter ouvindo os cantadores." (p.44)
"Os temas são
deliciosamente simples. A maior influência portuguesa ainda é notada nas
rodas infantis. O negro e o índio são responsáveis pelo ritmo profundo.
(...) Mas o negro, todos sabem, é mais escravo do ritmo. Veio da
percussão." (p.45)
[Se refere a Mário de
Andrade como "(...) erudito professor do conservatório de São Paulo"
(p.45) – cita "Ensaios sobre a Música brasileira".]
"Viajando o Sertão XVI"
"Decadência da
‘Cantoria’"
" O sertão perdeu seus
cantadores. A vida transformou-se. As rodovias levaram facilmente as
charangas dum para outro povoado. As vitrolas clangoram os foxs (...).
As meninas , que conheci espiando os ‘home’ por detrás (...) das portas,
(...) dançando a meia légua de distancia do par, hoje usam o cabelinho
cortado, a boca em bico-de-lacre, o mesmo palavreado das tango-girls do
Aéreo Club e Natal Club. Numa viagem, em janeiro de 1928, eu mostrava a
Mário de Andrade nos arruados do baixo-Açu, crianças com bochechinhas
pintadas de papel – encarnado, fingindo rouge. Encontrei jornais do Rio
e S. Paulo em toda a parte. O sertão descaracteriza-se. É natural que o
cantador vá morrendo também." (p.46)
"(...) A vaquejada, velha
escola de agilidade, de afoiteza, de arrojo, de valentia, de presença de
espírito e decisão pessoal está desaparecendo. Para substituir, junto
aos moços, esta tradição de bravura, vou encontrando, melancolicamente,
campos de foot-ball ..." (p.47)
"(...) Quais são os
mestres da Cantoria de agora? Preto-Limão, Serra Azul (...) , não
deixaram herdeiros no trono humilde em que dominavam o sertão (...) ...
Nada mais resta dessa literatura oral, preciosa e milionária de
curiosidades (...) Toda essa seiva borbulhante que perfumou dois séculos
de vida livre e bárbara, secou para sempre a nascente puríssima?" (p.47)
"É fácil para qualquer
folclorista apontar o cuidado de todos os governos para recolher sua
literatura oral. Academias, sociedades financiadas oficialmente,
comissões, caravanas, percorrem todas as regiões registrando tudo,
fixando modismos, guardando as músicas, fazendo um repositório para
corresponder as necessidades futuras, quando as terras pitorescas
ficarem sem as peculiaridades lindas.
Nós nunca lembramos
oficialmente desta riqueza que se esta acabando. Há um sorriso superior
de homem impotente, desdenhoso e sábio, quando ouve a frescura dos
versos sertanejos. Pobre superioridade, triste desdém misérrima
sabedoria..." (p.47)
"(...) Possuímos os
estudos de Gustavo Barroso, o Mestre, João Ribeiro, Lindolfo Gomes,
Basílio de Magalhães, Alberto de Faria, mais uns vinte ilustres. Gustavo
delimitou os ciclos mas sua vida lançou-o para outras atividades. O
sertão exige uma existência inteira voltada ao seu amor (...)."
"Viajando o Sertão XVII"
"Carnaúbas"
"Em 1929 vim de
Macau para Açu atravessando o vale pontilhado de casinhas sorridentes e
cheio de alegria. Sobressaía a cor encarnada, índice de mentalidade
primitiva, arrebatada, impulsiva, sexual. Uma população intensa
estirava-se, em léguas fartas, erguendo os ranchos numa continuidade que
dava a ilusão duma imensa cidade, dum acampamento de várias raças, com
indumentária peculiar. (...) A carnaúba explicava tudo aquilo.
Agora conheci o brejo do
Apodi. O olhar se espraia, intérmino, naquele cenário verde-lodo, pesado
e morno de fecundidade. O Dr. Mário Câmara fazia parar o auto, empolgado
com a paisagem absorvente. (...) A aragem fria da chapada descia,
silvando, para o cadinho ardente onde uma população alacre e viva se
fixara, para existir com a vida daquelas árvores ásperas e lindas."
(p.48-49)
"Não há nenhum auxilio
para a criação de novos carnaubais. É uma indústria que esta despertando
interesse. (...) E nós continuamos a produzir como a um século,
derribando as árvores existentes, esperando que a terra nos dê,
maternalmente, o que não sabemos conservar? ..." (p.50-51)
"Viajando o Sertão XVIII"
"Resumo dos temas"