A escola , a
criança e a literatura infantil
Luciana Borgerth Vial Corrêa[*]
O perfil do intelectual que se afirma ao
longo da década de 1920 é o do indivíduo que possui um saber especializado –
o cientista. Cecília Meireles, reconhecidamente uma poeta, também se
destacava, no meio intelectual, por ser detentora de um saber especializado
– a pedagogia, sustentada pela psicologia. Em outras palavras, era uma
educadora.
Formada em 1917 pela Escola Normal, a escritora ingressa no magistério
público. Suas atividades educacionais, no entanto, não se resumem à prática
da sala de aula. Envolvida com a pedagogia moderna, a professora não apenas
assumiu uma coluna diária intitulada "Comentário " no jornal Diário de
Notícias, mas também foi responsável pela "Página da Educação" neste
jornal no período de 1930 e 1933.[1]
Foi nessa época, mais precisamente em 1932, que a educadora assinou o
Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Uma outra série de crônicas da
autora foi publicada entre 1942 e 1945, no jornal A Manhã, nas quais
aparecem mesclados temas culturais e educacionais.
Sempre articulando as questões literárias às questões educacionais, Cecília
Meireles ministrou um curso para professores da prefeitura de Belo
Horizonte, em 1948, o qual resultou no livro Problemas da literatura
infantil, publicado em 1952. Nesse caminho, a autora escreveu, também,
ao longo de sua vida, livros para crianças.[2]
São questões centrais para Cecília Meireles educadora a escola e a formação
do leitor. Procuraremos discuti-las através da importância da literatura
infantil no processo de educação e o modo como a autora trabalha as relações
assimétricas que se estabelecem entre o autor e o leitor , na literatura
infantil.
Em diferentes crônicas publicadas na “Página da Educação” , a autora chama a
atenção para o fato de que escrever para crianças não é uma tarefa fácil. Ao
contrário, trata-se de uma atividade extremamente difícil, delicada e sutil.
No Comentário - Livros para Crianças de 9 de novembro de 1930, a cronista
aborda, mais uma vez, essa difícil tarefa e afirma que escrever para
crianças requer do produtor, simultaneamente, “ciência “ e “arte”. Ciência,
porque é preciso conhecer a criança, “as íntimas condições dessas pequenas
vidas, o seu funcionamento, as suas características, as suas
possibilidades”. Os interesses do mundo infantil não são iguais aos que
povoam o imaginário dos adultos, nem tão pouco os interesses que esses
julguem ser os das crianças . Então, para que haja comunicação entre o autor
e este específico leitor, torna-se necessário que o primeiro conheça o
segundo. A ciência identifica a exigência de formação profissional, a
pedagogia, na tarefa de escrever para crianças. Destaca-se a face de
educadora de Cecília Meireles.
Mas, precisa-se também de ‘arte”. Se não estivermos diante de “alguém que
tenha o Dom de fazer de uma pequena e delicada coisa uma completa obra de
arte, não possuiremos o livro adequado ao leitor que se destina”. Apenas os
artistas possuem o domínio das normas estéticas, capacidade técnica que os
distingue. A arte identifica a face de poeta de Cecília Meireles.
Escrever para crianças requer ciência e arte.
A ciência pedagógica, segundo Cecília Meireles, informa que é preciso
conhecer o mundo infantil . Para isso , é necessário colocar em destaque a
concepção de infância que norteia a pedagogia moderna. Seus fundamentos
filosóficos encontram-se em Jean Jacques Rousseau, para quem a infância só
existe em respeito à ordem natural. A infância é parte inalienável da
natureza porque “a natureza quer que as crianças sejam crianças, antes de
ser homens” ( Apud NARODOWSKY, 1994, p 36). Por serem diferentes dos
adultos, têm maneiras próprias de sentir, ver e pensar. E devem ser amadas
pelos adultos.
Como uma etapa natural e diversa daquela da vida adulta , as crianças
possuem características que lhes são próprias. De acordo com Rousseau essas
características são a falta de razão e a capacidade de aprender. Assim,
na infância, convivem a mais completa ignorância e a maior das capacidades –
a de aprender.
São justamente essas particularidades que
determinam as relações a serem estabelecidas entre as crianças e os adultos.
A inexistência da razão adulta pressupõe a necessidade de proteção, já que a
criança é incapaz de comportar-se de forma autônoma (segundo sua própria
lei). O que a rege é a heteronomia, ou seja, a lei do adulto. Cabe, então,
ao adulto protegê-la, guiá-la.
O arcabouço teórico da pedagogia moderna baseia-se nessa relação assimétrica
entre as partes. De um lado, a criança, ser eticamente amoral porque
ingênuo e inconsciente, necessitando de direção. De outro, o adulto que
concede à criança proteção e direção e, consequentemente, passa a ter
o direito de ser obedecido. Esse contrato foi explicitado por Cecília
Meireles em seu livro
Criança, meu amor, publicado em 1924 e, posteriormente indicado como
livro de leitura para as escolas públicas do Distrito Federal. Os textos
reunidos sob o título de
Mandamento apresenta esses princípios rousseaunianos
de forma acessível à criança.
“ Mandamento II – Devo amar e respeitar a
professora como se fosse minha mãe.
(...) Ela deseja ver-me instruído e bom; e para isso trabalha (...) A
professora é a minha proteção e o meu guia(...) “( MEIRELES,1977, p 35).
Os pressupostos educativos da pedagogia
moderna baseiam-se também no pensamento de Jean-Jacques Rousseau. NARODOWSKY
(1994, p 36) indica que a questão central do livro Emílio é a
indagação de como promover a ação educativa adulta, sem contrariar as
prescrições da natureza, ou seja, do mundo infantil. Como resposta a essa
indagação deve-se colocar em prática uma ação que não perturbe o que é
natural. Em outras palavras, desdobrar aquilo que já se possui através da
experiência. Daí o primado da ação. Mas a ampliação das experiências ocorre
por um processo de reconstrução imaginativa, o que requer o domínio da
língua. Para TEIXEIRA (1965,p23) essa função ampliadora da experiência
transforma a língua em instrumento por excelência da educação.
É ainda Rousseau que fundamenta as estratégias da pedagogia moderna. A boa
educação é a que estimula o amor pelo conhecimento. Não se trata de ensinar
as ciências, mas “dar-lhe o gosto para amá-las e os métodos para aprendê-las
quando esse gosto estiver suficientemente desenvolvido.” (Apud BOTO, 1996, p
29). Contrapõe, dessa forma, a sensibilidade, a emoção, a imaginação, a
alegria, a confusão entre sentimento e pensamento, à razão adulta,
pressuposto da autonomia e base para o desenvolvimento das ciências.
Coloca-se dessa forma, para os escolanovistas, a importância da educação estética para a infância.
Cecília Meireles assim expressa essa dimensão formativa da infância:
“ Mas os professores integrados ao espírito da Nova Educação, baseados em
estudos psicológicos contemporâneos e seus resultados práticos,(...) sabem
que a educação estética é um meio infalível de atingir a alma da criança,
sensível e dócil á beleza, amoldável a ela, capaz de se deixar influenciar
pelo seu suave jugo, muito melhor do que obrigações rígidas, estabelecidas
quase como castigo, e como um castigo, na verdade recebidas.” ( Diário de
Notícias – Comentário – Educação estética da infância – 2/12/30).
Parte integrante dessa formação estética é a literatura infantil. Por isso,
escrever para crianças requer o artista, aquele que possui a sensibilidade e
intuição para criar de acordo “com a vibração especial que lhe transmite
cada ambiente” (Diário de Notícias – Comentário – Livros para Crianças
–9/11/30). O artista tem a capacidade de sugerir o belo, de estimular a
imaginação, a sensibilidade, atributos centrais da infância.
Mas essa capacidade artística deve estar
permeada pela ciência. O autor deve conhecer os interesses das crianças para
que possa escolher, distribuir, graduar e apresentar os assuntos.
Existem mecanismos eficazes para que seja
possível conhecer os interesses infantis: os instrumentos estatísticos, que
devem ser interpretados à luz da psicologia, e a observação do que escrevem.
Coerente com a convicção sobre a eficácia dos
meios científicos fornecidos pela estatística,
Cecília Meireles elaborou um inquérito sobre literatura infantil, no período
em que trabalhou com Anísio Teixeira, na Diretoria de Instrução Pública do
Distrito Federal. Do inquérito constavam 12 perguntas simples sobre os
hábitos de leitura das crianças e foi aplicado a alunos da 3a, 4a
e 5a séries primárias da rede pública de ensino( Ver VALLADÃO,
1997, pp 83 a 88).
Esses procedimentos são considerados
necessários para que sejam calculadas a medida e a natureza do que é
imprescindível à perfeita evolução da criança. Quem determina a
perfeita evolução é o adulto, indicando portanto a direção a ser seguida.
CAMBI (1999, p 352) chama atenção para o
aspecto do autoritarismo presente na pedagogia moderna, posto de tal forma
que a criança não o percebe como tal. Exemplifica com o Emílio de
Rousseau, para quem, a criança “não deve dar um passo que você não tenha
previsto, não dever abrir a boca sem que você saiba o que vai ser dito.”
A criança, ser da natureza, não portadora da
razão adulta, marcada pelos atributos da sensibilidade , emoção e imaginação
submete-se à direção do adulto que deve moldá-la de acordo com as diretrizes
por ele determinadas. Para os educadores da Escola Nova e, especificamente,
para Cecília Meireles, cabia formar o homem novo, configurado pelo humanismo
universal.
Os intelectuais e a cultura
PÉCAUT (1990)
caracteriza os intelectuais das décadas de 1920 e 1930 como aqueles que
saíram do isolamento em relação à sociedade e partiram para a ação. Na falta
de um projeto de transformação social para a construção de um Brasil
moderno, construíram um projeto de transformação cujo eixo era a nação, com
estratégias que giravam em torno do campo cultural, necessitando para isso de organizar a
instrução pública e o sistema de ensino.
O projeto de modernização do Brasil
voltava-se para o conhecimento da realidade nacional, cujos pressupostos
eram a existência de um povo ignorante, com classes sociais ainda em
formação e a presença de um Estado forte e mentor do processo que deveria conduzir o país a um
patamar moderno. No hiato existente entre o político e o social, os
intelectuais assumiram a posição de mediadores indispensáveis, em
substituição às classes sociais, na medida em que pretendiam conhecer melhor
do que elas próprias seus interesses profundos. O conhecimento da realidade
os capacitava para o comando desse projeto.
A proposta dos intelectuais de construção de um Brasil moderno elege como
principal problema nacional a educação. A introdução do Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova assim hierarquiza os problemas nacionais,
“... nenhum sobreleva em importância e
gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico podem
disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a
evolução orgânica do sistema cultural de um país depende de suas
condições econômicas , é impossível desenvolver as forças econômicas, ou
da produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o
desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os
fatores fundamentais do acréscimo da riqueza de uma sociedade” ( Diário
de Notícias – Página da Educação – Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova – 19/3/32).
Para Cecília Meireles, signatária do
Manifesto, a questão educacional era de tamanha importância que em seu
Comentário – O que se espera e o que se teme , de 9 de janeiro de 1931,
assim se pronuncia:
“ A questão educacional é uma questão de
tamanho valor, de que depende a própria nacionalidade, e não
apenas ela, mas também essa
fraternidade universal que é o desejo dos homens em cujo espírito
se aboliram todos os símbolos de guerra, e em cujo coração há lugar para
todas as pátrias, e amor e generosidade para todas as criaturas.”[3]
O projeto educacional dos Pioneiros da
Educação Nova trazia subjacente uma determinada concepção de cultura.
Fernando de Azevedo, autor do Manifesto, assim a explicita. A cultura de um
povo encontra-se dividida em dois estratos: de um lado, a cultura
tradicional, conhecida como folclore, composta dos usos e costumes, contos,
lendas, canções, práticas, enfim, sem teorias ou doutrinas. Caracteriza-se
por ser sempre uma elaboração coletiva, que se transmite pela tradição oral.
De outro, a cultura superior, de elite, que consiste na verdadeira cultura
pois pressupõe “a elaboração pessoal de relações originais”, através de
pesquisas científicas que levam a descobertas e permitem aos homens passar
da simples aceitação passiva das relações já criadas para a produção de
relações originais. Caracteriza-se por ser uma criação individual, que
permite a mudança do indivíduo da condição de elemento da cultura para a
condição de agente ou inventor social. Cumpre uma tríplice função social – a
de produzir, julgar e transmitir os valores espirituais de um povo.
(AZEVEDO, 1946, p 425)
Ainda segundo esse autor, os dois estratos
podem coexistir de forma isolada, mas quando a cultura superior se abre às
tradições religiosas, literárias e artísticas, a cultura torna-se, então,
obra de todo um povo, ganhando assim um caráter
nacional. Essa articulação ocorre em dois sentidos: de cima para baixo,
quando as camadas intelectuais se abrem para a pesquisa da cultura
tradicional e de baixo para cima, pela comunhão das massas com a cultura. O
primeiro movimento ocorre a partir dos estudos científicos, enquanto o
segundo se dá através da educação. Daí a ênfase que os pioneiros conferem e,
entre eles, Cecília Meireles à educação como
condição da própria nacionalidade. No entanto, a perspectiva cultural de
Cecília Meireles é o universalismo, capaz de promover a fraternidade
universal.
As duas perspectivas culturais presentes entre os intelectuais não são
opostas e, sim, complementares. A tarefa dos intelectuais preocupados com o
nacionalismo consiste em estabelecer as diferenças entre os traços culturais
dos povos. Os universalistas, ao contrário, estariam voltados para o
estabelecimento das semelhanças culturais entre os povos. Para os primeiros
prevalecem os ideais nacionais, os ideais dos cidadãos, enquanto para os
segundos destacam-se os ideais da humanidade.
Assim, para Cecília Meireles, a finalidade
educacional seria bastante precisa:
“(...) A educação, nos tempos de hoje, terá
de formar não homens profissionais, homens cidadãos – mas , ao
contrário, profissionais e cidadãos que sejam preliminarmente homens.”
(Diário de Notícias – Comentário – A finalidade educacional – 23/10/30.)[4]
A capacidade de aprender é um dos atributos
centrais da infância. Para a autora, existem duas maneiras de aprender: “ou
pela tradição ou pela escola” ( jornal A Manhã – Educação Doméstica –
09/01/42). Nas sociedades modernas, a tradição está agonizando. Aprender,
restringe-se, então, à escola, responsável pela introdução da criança na
leitura e na escrita.
Cecília Meireles distingue, no entanto, a função desempenhada pelos livros
didáticos daquela que compete aos livros de
literatura infantil no processo educacional. Os primeiros são livros de
aprender a ler, as séries de leituras graduadas que os completam, os livros
das diferentes disciplinas. São didáticos, pois, “o que se tem em vista é o
exercício da linguagem e a obediência a estas ou àquelas recomendações
pedagógicas”, ficando o texto na dependência desse mecanismo, “sem grandes
possibilidades para a imaginação” (MEIRELES, 1979, p23). Esses livros apenas
excepcionalmente possuem interesse literário, por um “milagre do autor”
(Idem).
O livro de literatura infantil cumpre outra
função. Nas sociedades modernas, ele substitui o aprendizado pela
transmissão oral. Compete a ele, no processo educacional, transmitir a
tradição literária, base cultural dos diferentes povos. Ocupa o espaço da
aprendizagem não formal.
A literatura infantil deve estar marcada pelo
interesse literário e deve proporcionar à criança o exercício da imaginação,
exemplos de moral e momentos de prazer espiritual além de destacar o belo. É
um livro de literatura infantil, portanto, aquele
que reúne essas características:
“Ah! tu, livro despretensioso, que na
sombra de uma prateleira, uma criança livremente descobriu, pelo qual se
encantou, e sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os
companheiros, a merenda ... tu, sim, és um livro infantil, e o seu
prestígio será, na verdade, imortal.
Pois não basta um pouco de atenção dada a uma leitura, para revelar uma
preferência ou uma aprovação. É preciso que a criança viva sua
influência, fique carregando para sempre, através da vida, essa
paisagem, essa música, esse descobrimento, essa comunicação...”
(MEIRELES, 1979, p 28).
A literatura infantil não é um passatempo e
sim uma nutrição e o seu valor só será apropriado se houver uma leitura
silenciosa e seguida. Daí o espaço privilegiada de leitura não ser a sala de
aula e sim a biblioteca, seja ela particular, pública ou escolar. Dentro do
projeto dos escolanovistas, a biblioteca escolar assume um lugar fundamental
na formação. É um espaço estruturalmente ligado à sala de aula e não apenas
uma instituição anexa. É o espaço onde se encontram os livros de consulta
para pesquisas bem como os livros de literatura infantil.
Para Cecília Meireles, “as bibliotecas
infantis correspondam a uma necessidade do nosso tempo, visto não existirem
mais amas nem avós que se interessem pela doce profissão de contar
histórias.” (Idem , p 111). O seu acervo deve promover o humanismo infantil.
Para LARROSA (1996), a biblioteca humanística traz implícita uma determinada
concepção de tempo. Ela encarna o tempo histórico e coletivo da cultura e o
leitor, ao realizar a leitura, estabelece uma relação com o tempo da
tradição e da cultura. Essa cultura é interiorizada através do mecanismo da
reflexão.
Cecília Meireles finaliza seu livro
Problemas da literatura infantil com os versos atribuídos à Bárbara
Heliodora:
“ Meninos eu vou ditar
as regras do bom viver
não basta somente ler,
é preciso meditar,
que a lição não faz saber,
quem faz sábios é o pensar” (p 117).
A ligação com o tempo da cultura determina a
matéria-prima do acervo da biblioteca infantil moderna. A maior parte dos
livros dessas bibliotecas deveria ser composta por
adaptações de antigas narrativas que “pertencem ao tesouro geral da
humanidade” (Idem, p 42). Para ela, é fundamental a permanência do
tradicional na literatura infantil.
“ Insistimos na permanência do tradicional
na literatura infantil, tanto oral quanto como escrito, porque por ele
vemos um caminho de comunicação humana desde a infância que, vencendo o
tempo e as distâncias, nos permite uma identidade de formação. Por essa
comunhão de histórias, que é uma comunhão de ensinamentos, de estilos de
pensar, moralizar e viver, o mundo parece tornar-se fácil, permeável a
um sociabilidade que tanto se discute.
Se as religiões tentam realizar a fraternidade estabelecendo princípios
que tornam os homens reconhecíveis à luz do seu credo, essa moral leiga
ajuda a realizar tal fraternidade, estabelecendo uma compreensão
reciproca à luz das mesmas experiências milenares, traduzidas em
narrativas amenas.
A literatura tradicional apresenta esta particularidade: sendo diversa em
cada país, é a mesma no mundo todo. É que a mesma experiência humana
sofre transformações regionais, sem por isso deixar de ser igual nos
seus impulsos e idênticas nos seus resultados. Se cada um conhecer bem a
herança tradicional do seu povo, é certo que se admirará com a
semelhança que encontra, confrontando-a com a dos outros povos. (...) É
um humanismo básico, uma linguagem comum, um elo entre as raças e os
séculos” (MEIRELES, 1979,p 64).
A função da literatura infantil é dar à
criança o acesso ao tempo da tradição, formando um humanismo básico e
apontando para a direção do homem de compreensão universal, base da
fraternidade.
A presença de livros seculares na literatura
infantil se explica porque possuem uma “essência de verdade” e porque
possuem “qualidade de estilo irresistível”. De qualquer maneira, “o milagre
fundamental está nas mãos do autor” (Idem, p 91).
Cecília Meireles aponta para a inexistência, no Brasil, de autores que se
dediquem a fazer livros infantis, como por exemplo, Constâncio Vigil,[5]
na Argentina e Selma Lagerlof, na Suécia , ganhadora do prêmio Nobel de
literatura em 1909.
Na Página da Educação havia uma seção
“Publicações” , onde diversas vezes, foram realizadas análises críticas de
livros escritos para crianças. Nem mesmo Monteiro Lobato escapou. Em relação
a este autor, Cecília Meireles escreveu em carta a Fernando de Azevedo,
datada de 9 de novembro de 1932:
“Recebi os livros do Lobato. (...) Ele é
muito engraçado, escrevendo. Mas aqueles seus personagens são tudo o que
há de mais malcriado e detestável no território da infância. De modo que
eu penso que os seus livros podem divertir ( tenho reparado que divertem
mais os adultos que as crianças) mas acho que deseducam muito.(...)” (
Apud. LAMEGO, 1996, p 229)
Com certeza, Lobato, na compreensão de
Cecília, não possui os atributos de “ciência” e “arte”, fundamentais para se
escrever para crianças. Pelo trecho acima, ele não obedece aos cânones
pedagógicos, pois os personagens são “malcriados”, e não se adequam a uma
concepção de infância, dócil, obediente, submetida à direção do adulto. Ao
lado dessas, existem críticas também aos cânones literários.
O intelectual e a formação do leitor.
De uma forma aparentemente contraditória, Cecília Meireles afirma a
importância da permanência do tradicional na literatura infantil e a
situação ideal da literatura infantil com as crianças lendo autores
contemporâneos, ao invés de autores que escreveram em tempos remotos.
Essa aparente contradição se desfaz se
pensarmos alguns aspectos da formação humanística. Segundo LARROSA (1996), a
educação pontua o tempo no passado e no futuro, indicando assim tanto a
conservação da tradição como a sua renovação. Se essa renovação dá-se a
partir do leitor, de sua reflexão, na biblioteca infantil ela ocorre pela
mediação do autor contemporâneo – o intelectual que se debruça sobre a
cultura tradicional para a partir dela estabelecer relações originais. É
esse o destaque que Cecília Meireles dá à obra de Selma Lagerlof, A
viagem maravilhosa de Nils Halgerson.
“Quando se considera a grande obra de Selma
Lagerlof, (...) , e se reflete sobre os elementos que a inspiraram, não
se pode deixar de perceber o valor da influência do tradicional e
popular, representado pelos trovadores, pelas velhas contadoras de
histórias, pelos monges compiladores de lendas: os credores que
trouxeram sua contribuição oral para a formação dessa vida, iluminada
ainda pela literatura clássica nacional, e pelas epopéias que são também
a mais remota tradição, cristalizada...
(...)
Em todas as grandes vidas, esse elemento tradicional aparece como raiz
profunda, que penetra igualmente o solo da pátria e o solo do mundo; que
vem da infância de cada um e da infância de todos, e concorre para essa
fusão do individual no coletivo, do coletivo no individual, essa
identificação do homem com a humanidade” (MEIRELES, 1979, p 65).
Os autores contemporâneos, adaptando as
antigas narrativas, conservam as tradições ao mesmo tempo que as renovam.
Mas a dimensão da renovação, aquilo que permite apontar para o futuro, deve
ser cuidadosamente pensada. Cecília Meireles chama atenção para a dimensão
de moral que essas antigas narrativas comportam, que se opõe à dimensão
moderna, bem como a necessidade de se mesclar o ‘maravilhoso” obtido através
de fórmulas encantatórias nessas narrativas com o “maravilhoso” contido nas
experiências cotidianas. É importante também que o autor, para conseguir a
comunicação com a infância, não coloque no texto os seus preconceitos, a sua
agressividade. Deve buscar o belo de uma forma neutra, dentro dos parâmetros
ditados pelos ideais humanistas.
Além desses aspectos, a escrita de livros para crianças deve submeter-se a
determinadas regras. A primeira diz respeito aos temas. Esses não devem,
para a autora, ser perniciosos, não devem expressar os defeitos da
sociedade, devem evitar
situações fantásticas como punhais para punir traições, situações que
levem ao fanatismo, temas que proponham a malícia sexual. A beleza deve ser
buscada na existência cotidiana, para que não provoque influências negativas
nas crianças. No que diz respeito à forma, algumas regras são também
significativas. Além da própria estrutura do texto, o cuidado com a
linguagem faz-se necessário. O vocabulário deve ser simples, ao alcance da
compreensão da criança, mas devem ser evitadas as gírias, os modos de falar
do povo inculto, as formas infantis de fala. Cecília Meireles adverte que
“simplicidade não significa banalidade” (Diário de Notícias – Comentário –
Literatura Infantil – 28/6/30).
Os autores de literatura infantil devem ser,
portanto, os intelectuais que detentores de uma cultura de elite, são
capazes de se debruçar sobre a cultura tradicional e a partir dela
estabelecer novas relações, desde que obedeçam aos cânones pedagógicos e
literários, por ela considerados.
O intelectual apto,
segundo Cecília Meireles, a escrever para as crianças, renova as tradições
indicando o caminho do futuro. A criança , ser obediente , que sofre o
“suave jugo da beleza” , absorve através da literatura infantil o tempo da
tradição e o tempo da cultura, na direção da formação do homem de
compreensão universal, fundamental para a fraternidade.
Formar o leitor, então, implica em
introduzi-lo na linguagem, mas fundamentalmente, na cultura humanística. A
escola apresenta-se com uma dupla tarefa: na sala de aula, transmitir a
linguagem e na biblioteca, a cultura que precede e cerca a criança.
Bibliografia
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Rio de Janeiro, Record, 1996.
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________________ - Problemas da literatura infantil. 3a
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________________ - Jornal Diário de Notícias – Página da Educação.
1930 a 1933.
________________ - Jornal A Manhã. 1942-1945.
NARODOWSKY, Mariano – Infancia y poder. La conformación de la pedagogia
moderna. Buenos Aires, Aique, 1994.
PÉCAUT, Daniel – Intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a
nação. São Paulo, Editora Ática, 1990.
TEIXEIRA, Anísio – “A pedagogia de Dewey. Esboço da teoria de educação de
John Dewey”. In: DEWEY, John – Vida e educação. 5a edição.
São Paulo, edições Melhoramentos, 1965.
VALLADÃO, Tânia Cristina C – Canção da flor da infância: Cecília Meireles.
Tese de doutorado. Departamento de Letras. UFRJ, 1997. Orientadora: Profa
Dra
Gilda Salem Szklo.
[*] - Mestre em Educação pela
PUC-Rio com a Dissertação intitulada Infância Escola e Literatura
infantil em Cecília Meireles”, professora substituta de Prática de
Ensino e Didática Especial em História da UFRJ, foi bolsista de
aperfeiçoamento em pesquisa no projeto integrado Monteiro Lobato, Cecília
Meireles e outros descobrimentos do Brasil,
coordenado pelos professores Ilmar Rolhoff de Mattos e Margarida de
Souza Neves e auxiliar de pesquisa no trabalho sobre Armanda Álvaro Alberto,
de Ana Chrystina Venancio Mignot, que deu origem à sua tese de doutoramento,
ocasião em que, pela primeira vez trabalhou com a Página da Educação
que Cecília Meireles manteve n’ O Diário de Notícias, do Rio de
Janeiro.
[1] - Para esta questão, ver o
artigo de Ana Chrystina Venancio Mignot.
[2] - Para esta questão, ver o
artigo de Regina Zilberman.-
[3] - Grifos meus.
[4] - Grifo no original.
[5] - Ver na Página de Educação
a coluna “Comentários”, nos dias 21 de abril de 1931, 22 de maio de 1931 e
26de junho de 1931.
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