Entre os símbolos e a vida: poesia, educação e folclore. “Aí, já é pleno mundo da
poesia. O povo - quando é povo deveras – Renato Almeida, um dos principais articuladores do movimento folclórico brasileiro, ao homenegear Cecília Meireles por ocasião de sua morte em 1964, enfatizou e reverenciou uma entre as tantas atividades a que Cecília se dedicou ao longo da vida: a de folclorista:
O estudo do folclore constituiu
um dos campos a que Cecília se dedicou paralelamente a suas atividades
literárias e pedagógicas. Entre 1926 e 1933 já a encontramos interessada no
assunto, produzindo regularmente uma série de desenhos com a finalidade de
estudar gestos e ritmos ligados à cultura negra no Rio de Janeiro[1].
De 1942 e 1944, Cecília escreveu crônicas semanais para o jornal A Manhã,
muitas delas tendo como ponto central o folclore infantil. A partir de 1947,
convidada a integrar a recém-criada Comissão Nacional de Folclore, Cecília
começou a relacionar-se regularmente com o Movimento Folclórico,
participando de muitos de seus eventos, discussões e publicações.
E em outro momento desse mesmo discurso, afirma:
Cecília teve forte atuação como
educadora e foi sobretudo à infância que ela se dedicou nesta área. Formada
professora pela Escola Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro em
1917, ela começou, logo em seguida, a lecionar. Sua trajetória envolveu
episódios como a candidatura frustrada à Cátedra de Literatura da Escola
Normal em 1929, quando apresentou a tese intitulada “O Espírito Vitorioso”;
a direção, a partir de 1930, de uma página diária sobre educação no
Diário de Notícias do Rio de Janeiro; a assinatura do “Manifesto dos
Pioneiros da Escola Nova” em 1932; e a organização da primeira biblioteca
infantil no Rio de Janeiro em 1934. Neste campo, destaca-se o vínculo de
Cecília com o projeto inovador dos “Pioneiros da Escola Nova”, que propunha
a democratização da educação como um meio essencial para a ordenação da
sociedade. Este projeto defendia a educação pública, universal e laica, que
reconhecesse a especificidade de seus alunos e ensinasse ativa e
criativamente. Dessa maneira, o folclore
expressa um projeto e um campo de atuação para Cecília Meireles
(Velho.1991). Implica um diagnóstico do mundo e do momento vivido e a
idealização de meios de ação. Este texto pretende desenvolver as idéias
mestras deste projeto e contribuir para a explicitação da visão de mundo que
nele se configura. Um retrato do humano: folclore, povo e universalidade “Com ser um retrato do
homem, o Folclore contém todas Cecília Meireles teve grande participação na
imprensa através de sua extensa produção de crônicas. O Diário de
Notícias manteve sua página diária sobre educação de 1930 a 1934; o
jornal A Manhã abrigou sua coluna sobre folclore infantil de 1942 a
1944; também o Correio Paulistano e A Nação publicaram suas
crônicas. Esta produção enfocou os mais diversos assuntos, mas envolve, como
um traço comum, a recorrente valorização de alguns personagens. As crianças e o povo emergem como personagens
centrais em seu projeto de atuação diante dos problemas dos “tempos atuais”.
Como poeta e artista, ela reconhece em si a sensibilidade de perceber o
alcance e a dramaticidade das questões de seu tempo e não foge à tarefa de
contribuir para sua explicitação e eventual superação. Puras e ainda não
corrompidas, as crianças devem ser educadas a partir de um projeto educativo
que veja na tradição cultural um alicerce de sua formação. O povo conserva
esta tradição, recolhida e estudada pelo folclore, e deve ter a
possibilidade de continuar a conservá-la. Em discurso proferido na abertura da Exposição Interamericana de Artes e Técnicas Populares, promovida em São Paulo, em 1954, Cecília Meireles apresenta sua visão com relação à atualidade e seus problemas:
A atualidade, marcada pelos horrores da Guerra, é vista portanto como o tempo em que a lógica e a ciência sufocam a sensibilidade, a inspiração e a sabedoria e provocam uma distância crescente entre os homens. Os “tempos atuais” são os do desencontro e da incompreensão, obedecem a formas artificiais de viver, e velam a essência mágica e comum a todos os homens. O povo, no entanto, encontra-se em situação particular:
Claramente à parte do “mundo da máquina”, o povo conserva a proximidade da “magia”, o que possibilita, como consequência, uma relação singular com a arte e com a poesia. A esse respeito, Cecília comenta, taxativa: “Aí, já é pleno mundo da poesia. O povo - quando é povo deveras - navega por ele à vontade, e entre os símbolos e a vida, não percebe diferenças.” (Meireles. 1968a) O povo é, assim, aquele que, mais próximo à magia humana, mantém uma relação inata e natural com a arte. Nessa perspectiva, Cecília afirma que a exposição folclórica é, antes de mais nada,
Percebe-se claramente a forte identificação de Cecília com uma das possíveis relações entre o folclore e as preocupações sociais e políticas mais abrangentes. Tal como propunha a CNFL, na trilha dos objetivos apresentados pela UNESCO, Cecília, diante dos traumas deixados pela experiência da guerra e pelos mal extremo representado pelo nazi-fascismo, encontra no folclore uma via possível para a construção da fraternidade humana, para a erradicação dos preconceitos e para tornar possível a difícil compreensão entre os povos. Ainda nessa passagem, Cecíla formula o que, de seu ponto de vista, caracteriza o povo: ele é aquele que vive “na pura autenticidade de sua condição de habitantes da terra” e com a “ingênua crueza da liberdade”. Podemos aproximar o entendimento de Cecília sobre o folclore do paradigma indiciário, tal como formulado por Carlo Ginzburg (Ginzburg. 1989), para quem esse paradigma surgiu como um forte modelo epistemológico no interior das ciências humanas, no final do século XIX. O paradigma indiciário caracteriza-se por eleger como meio para o conhecimento justamente o pequeno e o trivial, aquilo que foi realizado com pouca atenção e reflexão. Por sua especial capacidade reveladora, “pequenos gestos inconscientes (...) mais do que qualquer atitude formal, cuidadosamentre preparada”( Ginzburg. 1989, p.147) tornam-se o espaço privilegiado para análise e estudo. Como afirma o autor, este paradigma encerra “a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores, desse modo os pormenores considerados sem importância, ou até triviais, “baixos”, forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito humano.” (Ginzburg. 1989, p.150) Essas formulações iluminam a proposta e o entendimento de Cecília com relação ao folclore, esclarecendo particularmente sua visão sobre o povo, a arte popular, a identidade brasileira e a universalidade. Cecília parece encontrar no povo um meio particularmente interessante para o acesso ao mundo mágico, justamente pela trivialidade irrefletida de seus gestos, por sua espontaneidade, pela liberdade e crueza de seus atos, sem premeditações. O povo é, por isso, autêntico. Sua ciência, radicalmente oposta à que domina o mundo da máquina, é também sua arte. Ambas são capazes de revelações preciosas. A arte do povo, intimamente ligada ao trabalho, emerge como uma “sub-humanidade”, que mantém fortes os vínculos com a tradição:
O termo sub-humanidade não aparece aqui no sentido de uma desvalorização da arte popular. Muito pelo contrário, enquanto indícios sub-reptícios de humanidade, tais elementos artísticos contêm em si um fundo humano, imemorial e mágico e são especialmente capazes de revelá-lo em sua essência. Mas esta arte, embora resista em meio à modernidade, encontra-se em vias de desaparecer, levando com ela a preciosa revelação. A relação entre corrupção e
regressão das tradições populares, discussão que envolve a questão da
industrialização e modernização da sociedade, é comum à grande parte dos
folcloristas. No entanto, a visão de Cecília apresenta particularidades. A
cultura popular, ponto central nas discussões dos folcloristas em geral, era
diretamente asssociada à identidade nacional. Mas, para Cecília, a cultura
popular extrapola o nacional.
Diante da difícil situação em que ela percebe os “tempos modernos”, que teriam como principal problema o da compreensão humana, o folclore aparece como caminho para o possível entendimento entre os homens, mostrando, para além do nacional, aquilo que há de universal e comum. Certamente porque o nacional, dado pelos “limites corográficos”, engloba em si o humano, a essência “mágica” e universal, apesar das singularidades com que ela pode se manifestar. Nesse sentido, Cecília afirma sobre a exposição folclórica que
Entender a complexidade humana; aproximar os homens através do conhecimento do fundo “mágico” comum a todos e particularmente evidente nas manifestações populares, tal é para Cecília a tarefa do folclore. Ele é, assim, responsável pela difusão de um “humanismo popular”, em que ela deposita suas esperanças:
É possível identificar dois pólos opostos e complementares, que orientam todo o pensamento de Cecília no campo do folclore: o “mundo da máquina”, a que estão associados os valores negativos, e o “mundo da magia”, que encerra os valores positivos. O mundo da máquina é associado à lógica, à ciência, à indústria. O mundo da magia, por sua vez, é recorrentemente relacionado à inspiração, à sabedoria, à autenticidade, à liberdade e à ingenuidade. No interior deste mundo de
oposições, o relacionamento entre os homens é um dos aspectos que merece
destaque. No mundo da máquina ele é caracterizado por incompreensão,
desencontro, preconceito, distância, sofrimento, estranhamento, aparência,
engano, solidão. Já no mundo da magia, ele é solidariedade, convívio,
fraternidade, reconhecimento, amor, comunhão e ilimitada família. Essa
comunicação “até os consfins do universo”, própria do mundo da magia, é a
intenção última de Cecília com o folclore, que transcende portanto os
limittes de uma única nacionalidade. Por ser retrato do humano, o folclore ajusta seu foco sobre o povo. Seu enquadramento é necessariamente local e particular e privilegia as manisfestações artísticas. A imagem revelada, contudo, ultrapassa ou aprofunda a realidade particular enquadrada. Para Cecília, focando o povo e suas manifestações mais simples e cotidianas, o folclore revela, sobretudo, a grandeza do universal. Uma história em ponto
pequeno: a identidade brasileira “A arte popular, em termos
modestos, com os recursos mais Cecília encontra no folclore o universal e apontá-lo constitui sua indicação mais preciosa. Contudo, a folclorista também se detém sobre a questão da cultura e da identidade do Brasil. Como se viu, a situação vivida pelo mundo no pós-guerra, a industrialização e o conseqüente artificialismo, trazem como decorrências o difícil acesso à “inspiração e sabedoria” e a sempre crescente distância entre os homens. Para a autora, este problema, característico da modernidade e consequência das conquistas do progresso, ganha contorno próprio no caso brasileiro uma vez que, no Brasil, o impasse entre progresso e tradição encontra-se ainda mais acentuado, devido às singularidades de sua formação e de sua história. Quando aprofunda questões relativas ao folclore, como em nenhum outra de suas inúmeras atividades, Cecília explicita seu entendimento acerca do país. Para ela, o homem brasileiro:
Nessa visão, a crise do pós-guerra e a efervescência do mundo industrial só veio aprofundar ainda mais uma questão interna já por si bastante difícil. Cecília enfrenta-se com a questão da identidade do Brasil, integrando assim a ampla gama de intelectuais brasileiros que, ao longo dos anos, empenharam sua produção na busca recorrente da própria identidade, constantemente descobrindo e dando a conhecer o Brasil (Neves e Mattos. 1994). No livro As artes plásticas no Brasil – artes populares (Meireles. 1968b), Cecília elabora uma reflexão em que arte popular e história brasileiras estão profundamente interligadas: a primeira sofrendo as consequências dessa história e revelando suas especificidades. Para ela, o Brasil enfrentou muitas dificuldades em sua formação e a principal consequência desse tortuoso caminho foi, no campo da arte popular, uma “crise de unidade”. Com esta expressão, Cecília refere-se à falta de unidade gerada neste campo pela diversidade das contribuições indígenas, africanas e portuguesas. Sobre a arte popular brasileira, afirma:
Retoma assim, e o reelabora, aquele que desde o século XIX se constitui como um dos principais mitos fundadores da identidade brasileira, o mito das três raças (Da Mata. 1987). Para ela, o Brasil se fez das contribuições indígenas, africanas e portuguesas e também sua arte popular é decorrência da fusão desses três elementos. No entanto, tal fusão não se mostra de maneira óbvia no território brasileiro, de tal maneira que:
Na caracterização apresentada, a contribuição indígena remete a uma “paragem” à que alguns se voltam; a africana é caracterizada por um “fascínio” exercido sobre outros; a européia, por sua vez, está presente, para muitos, como uma forte e “latejante saudade”. No entanto, estas três presenças, distintas e assim hierarquizadas, não deveriam ser buscadas lado a lado no território brasileiro, pois é sua fusão, e não o simples somatório de suas características próprias, que conformaria uma nova unidade: a identidade brasileira. A crise de unidade na arte popular, é uma expressão, portanto, da crise de identidade mais ampla, própria do Brasil. Para a autora, ela evidencia a difícil fusão entre as três culturas formadoras do que somos, que teria se efetivado no campo literário e musical, mas não no domínio das artes plásticas:
Cecília destaca o desprezo provocado pelas “ocupações servis de cativeiro”, como fator que dificultou ainda mais tal fusão no campo plástico:
Aos efeitos perversos da escravidão e à tríplice cisão na origem do que somos, viriam a somar-se a dispersão territorial, a crise mundial do pós-guerra e “o peso da era industrial”, aprofundando ainda mais as dificuldades enfrentadas:
Na perspectiva de sua reflexão, a história brasileira é vista como um eterno recomeço, constantemente arrastada pelo turbilhão das novidades exógenas, cada vez mais perdida na incessante busca de si mesma até chegar ao que não hesita em qualificar de “lamentável caos” do momento que vivia e procurava analisar:
Esta passagem ressalta duas ordens de problemas vividos pela história brasileira: o recorrente vício de fazer tábula-rasa do passado e a incessante procura de uma identidade propria. Cecília diferencia alguns momentos: primeiro, os índios que habitam o território; em seguida a chegada dos jesuítas “civilizadores”, mas cuja ação inviabiliza a contuinuidade harmônica da cultura indígena; e, finalmente, a independêcia, que parece renegar a memória colonial. Permeando todo esse percurso inicial da história brasileira, destacam-se a repetida anulação do passado e um eterno recomeço, que parecem pressupor o esquecimento de parcelas integrantes e ricas da história. A partir da independência, o Brasil defronta-se com a questão da identidade, a busca “de um estilo próprio” e, então, prevalece o labirinto da variedade de influências recebidas. Os valores positivos destacados na passagem são arte e passado e seus correspondentes negativos, moda e retrógado. A variedade de influências recebidas, acentuada pela rapidez própria da sociedade industrial, confunde, “baralha”, torna perceptível no que temos de melhor, o avesso negativo e vice-versa. Por essa razão, a arte rende-se aos modismos, a referência ao passado aponta na direção do retrógrado e o presente, sem história, vira caos. Como responsáveis pelas dificuldades de nossa formação, Cecília destaca a imensidão do território, aliada às diversisades regionais; a profunda diferença entre as três culturas que formaram o Brasil; a escravidão, que trouxe desprezo pelas atividades manuais e preconceito étnico; a ânsia de simular o que é próprio das nações européias, imitando-as e atropelando nossas “verdades”. Os pólos opostos do mundo da máquina e do mundo da magia recebem aqui novas caracterizações. Em primeiro lugar, destaca-se o plano da percepção da realidade, evidenciando oposições significativas: de um lado, estão febre, delírio, baralhamento, caos; do outro, equilíbrio, coerência, clareza e nitidez. Em segundo lugar, é importante a oposição entre diversidade e unidade. Em muitas passagens, diversidade aparece como algo negativo e característico do mundo da máquina, como nas noções de “acentuação da diversidade de enigmas que nos povoam”, de “multiplicidade de influências” e na forte ênfase na crise de unidade. Essas formulações ficam ainda mais acentuadas quando em contraposição ao mundo magia, que se identifica com a idéia de unidade, constantemente valorizada pela associação aos termos unificação, totalidade, concordância. No mundo da magia, o “homem-plural se sentirá maravilhosamente uno”(Meireles. 1954, p.18). Pode-se perceber, assim, como a diversidade das origens raciais e a diversidade regional, ainda que integrantes legítimos de nossa história, não deixam de representar tensões em sua perspectiva de análise, que ambiciona os ideais da harmonia e da unidade. Como resultado da fragmentação e da crise, o país está, na análise da autora, tão distante de suas raízes, que se apresenta como um enigma a ser decifrado:
Apesar do pessimismo expresso em diversas passagens, é possível entrever nas palavras de Cecília uma via de solução para decifrar o enigma do Brasil, sem perder de vista, contudo, o universalismo como valor mais alto. Há ainda uma possível solução – encarar “nossa verdade”, adivinhá-la:
Apesar das dificuldades
apontadas, a verdade do que somos ainda não se perdera totalmente e ainda
seria possível reconhê-la, mesmo que “por adivinhação”... “A arte popular manifesta a
sensibilidade geral dos que a praticam, por uma Para a poeta, a situação vivida pelo Brasil de seu tempo se caracterizaria pela fragmentação e pela crise, dificultando o acesso a uma camada mais profunda, de unidade e verdade. Carlo Ginzburg, no artigo já citado, afirma que é justamente em situações críticas, que a possibilidade de conhecimento, a partir de pequenos indícios, se reforça:
Sem dúvida, para Cecília, a realidade brasileira se mostra excessivamente opaca, com o duplo peso da história e do mundo presente, dominado pela máquina. Há, no entanto, uma verdade por trás desta opacidade. A zona privilegiada para o acesso a esta verdade, como revelação da sempre buscada identidade brasileira, é, para Cecília, o território das artes populares. Ao buscar definir identidades culturais pela via da arte, Cecília afirma que, em situação ideal:
Expressam esta situação ideal civilizações milenares, como a China e a Índia, exemplares, para Cecília, deste equilíbrio. Arte nacional é entendida, assim, a partir de uma expressiva metáfora. Como linguagem, ela elabora mensagens que são a expressão daqueles a produzem; como idioma, ela é uma especificidade comum à determinado povo. A “arte nacional” seria como uma linguagem que deve alcançar toda a nação, das elites aos mais pobres, comunicando ao mundo a alma de todo um povo. A arte é assim entendida como elemento fundamental para a garantia da identidade da nação e do seu povo, elaborando e representando essa identidade. Ainda que o termo “arte nacional” englobe tanto a arte erudita como a popular, a relação entre a arte nacional e a arte popular é, para Cecília, especial e deve ser marcada por uma vinculação orgânica e necessária, onde uma garante e se ampara na outra. Se a arte nacional é linguagem,
também o é a arte popular: “uma linguagem cifrada” que guarda em si
importantes mensagens, velhas tradições, portadora de riquíssimos vestígios
e indícios. No discurso de abertura da Exposição Folclórica de 1954, Cecília
se refere ao trabalho da Comissão Nacional de Foclore como capaz de elaborar Podemos identificar nessa segunda vertente um outro aspecto do paradigma indiciário conforme visto anteriormente. Já foi assinalado o valor da eleição do que é pequeno e aparentemente irrelevante como especialmente revelador. Cabe agora sublinhar a atitude cognisciva que complementa essa eleição. O pequeno é sinal, indício, de uma realidade mais ampla, revelando “pistas talvez infinitesimais [que] permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível” (Ginzburg. 1989, p.150). Segundo Ginzburg, a decifração, própria do saber dos primitivos caçadores, e a adivinhação, presente nas artes divinatórias, estão na origem remota do paradigma indiciário. Ambas envolviam atitudes cogniscivas muito próximas: eram capazes de “a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar uma realidade complexa, não experimentável diretamente” (Ginzburg. 1989, p.152). Para Cecília, as artes populares, “remotas expressões do inconsciente” (Meireles. 1968b, p.21), espontâneas e simples, constituem uma linguagem cifrada. Elas encerram indícios capazes de ajudar a decifrar o enigma da identidade brasileira e, por essa razão, podem contribuir para a “adivinhação” da “nossa verdade”. Por concentrarem diferentes manifestações artísticas, as festas populares são especialmente reveladoras da identidade brasileira. Para Cecília, elas reúnem em si toda a atividade artística que “entre nós fica sem aplicação na vida diária” e mostram, dessa maneira, “remotas expressões do inconsciente”, trazidas por um “impulso natural e sentimental”. As festas populares tormam-se assim acontecimentos capazes de reunir e apresentar “o que somos enquanto povo”. As artes brasileiras, que constituem no dia-a-dia expressões tão diversificadas e fragmentadas, alcançam então, ainda que por um momento fugaz, a unidade de um idioma comum.
E Cecília conclui:
A arte popular tem o poder de permitir a seus observadores atentos um vislumbre daquilo que somos. Ajudar nesse reconhecimento e encontrar, a partir de indícios e fragmentos, uma totalidade / unidade - a identidade brasileira - é a tarefa do folclore. Diante do “desaparecimento de ligações com o passado artístico”, ele possui três potencialidades básicas: poupar o que existe desse “patrimônio” que são as manifestações artísticas populares; tornar esse patrimônio consciente; e “determinar maior amor pelas suas manisfestações no passado e no presente” (Meireles. 1968b, p. 23). O foclore é assim possibilidade e caminho para vislumbrar “nossa verdade”. Porém, cada manisfestação da arte popular isoladamente, como inscrição cifrada, não revela imediatamente sua mensagem. Para alcançá-la, o observador deve seguir por diversas etapas os indícios apresentados. Ele deve,
A interpretação das artes populares requer trabalho e tenacidade. Para realmente desvendar sua mensagem cifrada, são necessários esforço, atenção e aprendizagem, num exercício individual, no caso, por exemplo, de uma solitária visita à exposição folclórica, e coletivo, tal como deve ser feito através da escola:
A continuação do discurso
evidencia qual é, para Cecília, o “fim mais certo”, a meta que deve orientar
a ação educacional. Ao apresentar o movimento ideal a ser percorrido pelo
espírito dos visitantes da Exposição Folclórica, observa, referindo-se à
educação: Aproximar os homens na
solidariedade nacional e preparar a solidariedade universal – esta parece
ser a possibilidade que o folclore apresenta, na perspectiva de Cecília
Meireles, possibilidade que se mostra particularmente proveitosa no campo
educacional. ALMEIDA, Renato - “Cecília
Meireles, uma companheira” in Revista Folclore. Vitória, Espírito
Santo: jan.-dez. 1964. XV, Nos. 78-80, p. 7. * Joana Cavalcanti de Abreu
cursa o 8o.período da graduação em história na Puc-Rio. O trabalho aqui
publicado é fruto do relatório final de suas atividades como bolsista de
iniciação científica do CNPq, vinculada ao projeto de pesquisa “Modernos
Descobridores do Brasil” coordenado pelos professores Margarida de Souza
Neves e Ilmar Rohloff de Mattos.
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