Paisagens Secretas:
memórias da infância.
Margarida de Souza Neves[1]
“Tudo no mundo é duplo: visível e invisível
O visível, de resto, interessa sempre muito menos.”
Cecília Meireles: Olhinhos de Gato.
- Fragmentos de uma infância contada
Nas bibliotecas de centenas de escolas
brasileiras, assim como nas Bibliotecas Públicas de todo o país, as crianças
leitoras encontram, desde sua primeira edição em 1980, o livro Olhinhos
de Gato (MEIRELES: 1980.). A autora, Cecília Meireles, alguns já
conhecem das antologias lidas em sala de aula. Certamente para um grupo
desses leitores infantis, o nome de Cecília está associado à descoberta da
poesia, uma vez que para não poucas crianças foi nas páginas de Ou isto
ou aquilo (MEIRELES: 1977. ) que a magia da palavra poética se revelou.
Caso os pequenos leitores tenham entre mãos a primeira
edição de Olhinhos de Gato, com linda capa da Maria Cristina Simi
Carletti em que uma menina aparece no limiar entre a intimidade do universo
doméstico, representado pelas flores de um papel de parede antigo, e o
arco-íris de cores do mundo exterior, aprenderão, na contracapa do livro,
que as páginas que escolheram para ler possuem o dom de fazê-las voar
“com Olhinhos de Gato numa viagem de emoções sentidas no fundo do coração”
por “um mundo de sonhos, medos, alegrias, dores e fantasias... A
Infância” (MEIRELES: 1980).
É discreto o para-texto dessa primeira edição em livro
das memórias infantis de Cecília: os treze capítulos são apenas numerados e,
além da contra-capa em que
os editores resumem o livro como uma viagem onírica,
somente uma breve
Nota do Editor esclarece que os textos que compõem o livro foram
publicados anteriormente, ao longo de dois anos, numa revista portuguesa;
que os personagens ocultos sob curiosos pseudônimos são reais e povoaram o
universo infantil da autora; e que Cecília-menina aparece na narrativa sob a
máscara da personagem título.
Caso a criança escolha para ler uma das edições mais recentes do
livro[2], o para-texto é mais complexo. Na capa
negra, uma montagem fotográfica um tanto assustadora mostra um rosto, metade
menina, metade gato. Na contra-capa, é outro o resumo do livro apresentado:
“uma narrativa intimista, com muita
musicalidade e poesia. É a vida de Cecília Meireles, relatada como num
diário de adolescente. Você conhecerá as alegrias, as tristezas e as
experiências de uma pessoa que tão bem soube expressar um pouquinho de
todos nós.” (MEIRELES: 1983).
A nota do Editor, destinada aos pais e
professores mais do que aos jovens leitores, repete aquela da primeira
edição, mas o livro traz também, após o último capítulo, uma página
intitulada “Autor e obra”, na qual, além de uma fotografia de Cecília
na que se destacam seus olhos claros e um sorriso algo triste, há um breve
resumo de sua vida. Nele, logo de início, os editores sublinham sua
orfandade precoce e o papel decisivo da avó Jacinta, “única pessoa
sobrevivente da família” (Idem: p. 136) para depois destacar sua
trajetória familiar e profissional e um elenco de suas obras mais
conhecidas. Além disso, o livro traz um encarte de três páginas de
Orientações de leitura “para uso do aluno” . Nele, fica implícito
o reconhecimento da dificuldade da leitura proposta para as crianças, uma
vez que, depois de esclarecer em linguagem pouco accessível para o público a
que se destina, que
“a autora nos dá uma narrativa subjetiva, delicada, em
que a realidade é comentada a partir do ponto de vista da menina Olhinhos de
Gato, apelido que ela recebera”, afirma que “por seu caráter lírico,
essa narrativa apresenta o que se poderia considerar uma estrutura
tradicional com começo, meio e fim claramente localizados. Por isso, para
ajudá-lo na análise do livro, propomos a seguir alguns itens que poderão
orientar a conversa que você e seus colegas farão sobre o livro”. (Idem:
Encarte, p. 1).
É possível supor que nem a indicação “literatura
infanto-juvenil” presente na ficha catalográfica desde a primeira edição
em livro, nem a promessa de vôos imaginários da contracapa da primeira
edição, nem a pista falsa de estar escrito a modo de um diário de
adolescente das edições mais recentes, nem mesmo os esclarecimentos e os
exercícios propostos pelo encarte possam seduzir crianças ou adolescentes
para a leitura desse texto adulto, denso, corajoso, desgarrador, marcado
pela onipresença da morte e pelo desejo de “uma coisa que não se acaba”
(Idem: p. 24). Talvez por essa razão seja livro pouco conhecido, ainda que
tenha sido traduzido para o espanhol em 1981.
Foi para olhos adultos que Cecília escreveu os textos
que, após sua morte em 1964, foram reunidos no Brasil em livro dedicado ao
público infanto-juvenil. E foram olhos adultos os de seu primeiro público,
quando leitores portugueses se surpreenderam ao encontrar em meio a onze
números da revista Ocidente, entre 1939 e 1940, aquelas páginas
confessionais de uma menina brasileira, que haviam conhecido, quando de sua
primeira viagem a Portugal em 1934, como mulher adulta, casada com o artista
plástico português Fernando Correia Dias, educadora e poeta consagrada.
Em 1939 e, sobretudo, em 1940, anos da primeira
publicação do que um dia viria a tornar-se o livro Olhinhos de gato,
a revista Ocidente, como de resto toda a imprensa portuguesa,
ocupava-se prioritariamente em cantar as glórias de Portugal,
monumentalizadas na grande Exposição que associaria os feitos do Estado Novo
português a outras datas históricas fundacionais para o país. Era recorrente
no discurso de jornais e revistas o argumento segundo o qual, se 1140 havia
sido o ano “da fundação da nacionalidade” após a vitória de Afonso
Henriques no Campo de Ourique, 1640, ao marcar o início dos 28 anos de lutas
contra os espanhóis que levariam à restauração de uma dinastia portuguesa,
seria o ano da “definitiva recuperação da independência temporariamente
perdida”; e 1940 viria a ser, nas palavras de Julio Dantas e Antonio
Ferro publicadas pela imprensa Lisboeta, o ano em que Portugal daria ao
mundo “o vigoroso espetáculo de uma vitalidade surpreendente e
excepcional” numa “Europa convulsa, agitada, revolucionada”. A
Exposição consolidaria assim a união indelével do que era visto pelo
salazarismo como “os três anos sagrados da nossa história”: “o ano do
nascimento, o ano do renascimento e o ano apoteótico do ressurgimento”
(ACCIAIIUOLI: 1998. p.107).
É possível que alguns dos leitores da revista Ocidente
percebessem o quanto o relato inglório dos devaneios e do universo doméstico
de Cecília-menina destoava do tom gradiloqüente dos muitos artigos escritos
sobre a glória lusitana naqueles anos. O certo é que, para a poeta que
visitara pela primeira vez a terra natal do pai de suas três filhas em 1934,
muitas coisas haviam mudado entre esse ano e 1939, ano em que mãos amigas
fizeram que os primeiros capítulos de suas memórias infantis começassem a
ser publicadas em Ocidente.
Em 1934, viajara a Lisboa a convite do Secretariado de
Propaganda do governo português (DAMASCENO: 1977. p. 63) e fora recebida
pelo mundo oficial e pelas rodas intelectuais como poeta, como educadora e
como autoridade em assuntos relacionados ao folclore. Nas Universidades de
Lisboa e de Coimbra, fizera conferências sobre folclore brasileiro, sobre
literatura e poesia no Brasil e sobre as reformas educacionais em curso em
seu país, e vira publicados os textos de duas delas, “’Notícia da Poesia
Brasileira’ e ‘Batuque, Samba e Macumba’, este último acompanhado dos
desenhos que a própria poeta traçara e expusera no recinto da conferência”.
(ZAGURY: 1983. p.16). E mesmo se nem sempre as relações entre o círculo de
intelectuais e o estado salazarista fossem fáceis, sentiram-se - ela e
Correia Dias - estimados e valorizados por escritores de todas os matizes
políticos e pelas honras oficiais.
De volta ao Brasil, anos particularmente duros esperavam
Cecília Meireles. Em 35 enfrentou a dor da morte trágica de seu marido e a
angústia da luta por sua própria sobrevivência e a de suas três filhas
pequenas. Mudara-se com as filhas para um apartamento na avenida Atlântica,
segundo ela “muito pequenino, mas suficiente para mim e as crianças”
[3]
. Adoecera.
Nesse mesmo ano de 1935 assistiu, impotente, à demissão
de Anísio Teixeira da Diretoria Geral do Departamento de Educação do
Distrito Federal, sinal inequívoco de que o governo getulista entrara em
rota de colisão com os projetos dos escolanovistas.
Em carta tristíssima , datada de janeiro de 1936, divide
com uma grande amiga portuguesa a “profunda tragédia” que vivia em
sua vida pessoal, o temor de estar “a ponto de perder o lugar na
Universidade” e a apreensão com o “movimento revolucionário que por
aqui andou, e em conseqüência do qual o Anísio foi afastado da secretaria de
educação” . Lúcida, analisa aquele “momento tão doloroso”.
Sincera, confidencia à amiga: “tenho sofrido muito, Fernanda”.
Discreta, deixa ao carinho da amiga a avaliação dos estragos provocados pela
tempestade que sobre ela se abatera: “calcula, pois, o que têm sido para
mim estes dias tormentosos [...] afrontando e vencendo o súbito abismo que
se abriu diante de mim”. Serena, reconhece: “apesar de ir trabalhar
sempre, estou bastante doente”. E esclarece que tudo o que na carta
escrevera “não é literatura não”.[4]
A partir de 1936, começou a ver ameaçada sua gestão à
frente da Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco, a primeira biblioteca
pública infantil brasileira, organizada em padrões modernos para a época
como um Centro de Cultura Infantil de múltiplas atividades. Em outubro de 37
o interventor do Distrito Federal decide o fechamento daquele que fora o
castelo de seus sonhos, com base no triste argumento de que a biblioteca
corrompia os espíritos infantis com livros comunistas tais como Tom
Sawyer[5]. Em 39, como tantos
outros homens e mulheres que acreditavam na paz como um valor universal,
Cecília testemunha o início dos horrores grande guerra. Não apenas o drama
familiar parece ter marcado essa segunda metade da década de 30 para
Cecília. Também tivera que ver o desmoronamento dos sonhos que alimentaram
os que acreditavam no potencial da escola pública, laica, universal e
democrática como fator de mudança para o país. Sentira sobre si o peso do
arbítrio no absurdo episódio do fechamento da Biblioteca Infantil do
Mourisco. E ainda tivera que ouvir as notícias da deflagração de uma guerra
de proporções sem precedentes e de implicações aterrorizantes.
Mesmo que não seja possível precisar a data em que seus
fragmentos de memória infantil foram escritos, o ano de sua primeira
publicação coincide com um período indubitavelmente difícil da biografia de
Cecília. E é talvez no território do sofrimento então vivido que Cecília
pode ter encontrado força e audácia, se não para escrever, ao menos para
tornar público o universo de sua infância dolorida, fazendo ecoar nesses
retalhos de memória de tempos pretéritos o turbilhão do presente vivido.
Porque, como nos ensina Paolo Rossi, desde Aristóteles sabemos que “a
recordação implica um esforço deliberado da mente, é uma espécie de
escavação ou de busca voluntária por entre os conteúdos que guardamos na
alma” (ROSSI: 1991. p. 13).
À falta de uma certeza sobre o momento em que esses
textos autobiográficos foram escritos ou sobre as motivações que levaram
Cecília a publicá-los em Portugal naqueles anos de 1939 e de 1940 que
fechavam um ciclo de sofrimento, cabe a conjetura.
O que é possível afirmar com alguma segurança é que a
autora parece ter emprestado um particular significado a esses escritos. É
ela mesma que o afirma, em entrevista concedida à revista Manchete:
“Se há uma pessoa que possa, a qualquer
momento, arrancar de sua infância uma recordação maravilhosa, essa
pessoa sou eu. Já principiei a narrativa dessa infância num pequeno
livro de memórias, aparecido numa revista portuguesa, com o título
‘Olhinhos de Gato’. Mas há muito para contar. (Apud DAMASCENO: 1977.
p. 58.)
A constante recordação do vivido em criança
justifica que tenha revisitado seu “pequeno livro de memórias” anos
mais tarde em várias de suas crônicas.
Habituada desde o início da década de 30 à atividade
jornalística, Cecília torna-se cronista de A Manhã, jornal carioca
fundado por Mario Rodrigues na década de 20 (SODRÉ: 1999. pp. 369 e 384) e
que, em sua segunda fase, quando Cecília Meireles inicia sua colaboração
como cronista em 1941, tornara-se parte da imprensa governista.
Em 42, Cecília passa a assinar nesse jornal uma coluna
diária na página intitulada Professores e estudantes. E, entre 42 e
47, publica n’ A manhã crônicas de natureza diversa, desde aquelas de
cunho estritamente literário até a série dedicada a estudos de folclore. É
numa dessas crônicas, publicada em 6 de junho de 1945 e intitulada Página
da infância, que Cecília retoma um dos textos já publicados pela revista
Ocidente e que, em 1980, será republicado praticamente na íntegra como o
quinto capítulo de Olhinhos de Gato[6].
Em outras crônicas, tais como Cântico dos cânticos (A Manhã:
03/02/1943);
Reino da solidão[7] (A Manhã:
27/07/1947); ou Mesa do passado (A Manhã: 24/08/1947),
voltam a aparecer episódios, temas ou personagens de suas memórias infantis
e, muitas vezes, narradora ou narrada, “a menina” que rememora, que
compartilha com os mais simples e os mais velhos a “sabedoria dos
contemplativos” (“Pai João e a Saúde”: IN:
A Manhã: 01/01/1942), e que divide com o menino Edmundo o desejo
“de ver o interior das coisas” (“Restos de Edmundo”. IN: A
Manhã: 03/05/1944)[8] .
No entanto, não foi apenas nas crônicas que Cecília tomou
sua própria infância como tema. É ela quem confidencia, em uma das raras
entrevistas em que fala de si própria, e não de sua obra:
“Tudo quanto, naquele tempo vi, ouvi,
toquei, senti, perdura em mim com uma intensidade poética
inextinguível.” (apud DAMASCENO: 1993. p. 58)
A memória é matéria de sua poesia. Não apenas
porque alguns dos episódios e personagens de “Olhinhos de Gato” estão
presentes em sua obra poética6 – a série intitulada Papéis,
de setembro de 1955, praticamente re-escreve, em clave de poesia, trechos de
sua prosa memorialística (MEIRELLES: 1994. pp. 1085 a 1087) - mas também, e
principalmente, porque alguns de seus poemas sugerem uma reflexão densa
sobre os trabalhos da memória, que, tal como a palavra poética, sabe que
“a vida só é possível
reinventada” (Reinvenção. IN. MEIRELLES:
1994. p. 239)
As alusões que, como autora, faz ao livro
Olhinhos de Gato, os veículos onde Cecília publicou em vida os
fragmentos de suas memórias de menina, os versos em que re-escreve seus
episódios e personagens, são pistas que parecem indicar que a autora sempre
os destinou ao público adulto, hipótese que pode sustentar o argumento
segundo o qual o que hoje constitui o livro Olhinhos de Gato não foi
pensado por sua autora como um livro para crianças, uma vez que Escrever
a infância[9] 6 é algo muito
diferente de escrever para a infância.
Considerar Olhinhos de Gato como um texto adulto e
memorialístico permite identificar nas “paisagens secretas”
(MEIRELES: 1983. p. 12) de seus devaneios infantis algumas facetas de sua
particular “arte da memória” (NEVES: 2000. pp. 229 a 237.), certas
inflexões presentes em sua poética, e não poucas revelações sobre a leitura
que Cecília faz de sua própria infância, que certamente marcarão sua poesia
e suas preocupações com a criança e a educação.
2. Segredo, magia e sonho
As observações até aqui esboçadas sobre a
história editorial de Olhinhos de Gato, e as interposições desse
texto memorialístico em outros escritos seus justificam um exame mais
cuidadoso de seu conteúdo.
A narrativa que compõe o livro se desenvolve entre dois
momentos marcantes. Como numa sinfonia, a abertura apresenta o tema da morte
– constantemente retomado ao longo dos treze capítulos – através de uma
recordação remota, a do beijo no “rosto duro e frio” da mãe morta
(MEIRELES: 1983. p. 9), e conclui-se com os acordes do relato do corte dos
cachos louros de sua primeira infância, quando ela se sente outra, “que
era e não era ela”; ouve da avó que “está ficando uma mocinha”,
e, com outro beijo de despedida, olha para os cabelos cortados e atados com
uma fita como quem olha para “uma outra criança, que se fosse embora”
(Idem: p.131).
O primeiro episódio conduz o leitor à cena da iniciação
de Cecília na dura realidade da orfandade e da morte, e como observam
Luzelena Gutierrez de Velasco e Ana Rosa Domenella, na escrita
autobiográfica “a presença da orfandade deixa um rastro indelével”
(IN. PASTERNAC et al.: 1996. p. 21), mesmo quando, como no caso de
Cecília-menina, não faltasse o afeto incondicional da avó – que no livro
aparece referida pelo apelido de Boquinha de Doce; de Pedrina - a
babá querida -, de Có, de Maria Maruca e dos demais agregados da casa, do
padrinho que morava no Largo dos Leões, da tia Totinha que a menina
considerava muito sábia porque “tocava piano e fazia pão de ló.”
(Idem: p.39) e mesmo das anônimas “gordas senhoras, com camafeus e
corais” (Idem: p.71). O último relato também está referido a um rito de
iniciação, aquele do ingresso numa outra etapa da vida.
É entre esses dois momentos, cada um à sua maneira
iniciático, que se desenvolvem os vários movimentos que compõe a vaga
música dessa infância em fragmentos textuais.
A linha melódica do livro é sincopada. Cada capítulo está
construído por uma série de pequenos trechos, por vezes alinhavados por um
tema que os unifica, por vezes justapostos, formando associações
surpreendentes. Em algumas ocasiões a melodia do texto sugere uma fuga,
polifônica e cadenciada. Em outras, é mais próxima a uma rapsódia,
fantasia instrumental que retira do popular seus temas e processo de
composição. Mas é sempre, no tema, no método de composição e na forma,
definida pelo fragmento.
Impossível determinar a lógica do enredo do livro. Tal
como ocorre no intrincado processo da rememoração, entrecruzam-se lembranças
e esquecimentos, misturam-se temporalidades diversas, sobrepõem-se o real e
o imaginário, interpenetram-se espaços, articulam-se corporeidade e
espiritualidade, confundem-se a mais pessoal das experiências com aquelas
ouvidas de outrem, fundem-se fantasmagorias e concretude. Mas sempre num
jogo de luzes e sombras projetadas sobre fragmentos do vivido.
É sob a regência dos cinco sentidos em alerta
que o exercício memorialístico de Cecília é conduzido.
Individualizados, cheiros, sons, sabores, sensações
visuais ou tácteis pontuam a narrativa com solos sensoriais. É o “cheiro
acre de barro novo, de chão regado, de terra úmida” que leva a Cecília
adulta a associar a chuva que contemplou na meninice a “um cheiro de
alegria” (Idem: p. 43), assim como foi “um cheiro diverso” (Idem:
p.9 e p.62) que fez a menina intuir que algo extraordinário sucedera no dia
da morte da mãe. É “a voz do galo – o canário cantando – o sussurro da
água no chão – o quase silencioso ciciar dos insetos – o bater dos relógios
e dos sinos - a gaita do doceiro, estridente e inábil – a corneta de chifre
do aguadeiro – as campainhas dos cavalos – os pandeiros de carnaval – as
cordas da guitarra: dlen, dlon, fll...” ouvidos em tempos remotos
que fazem a escritora experiente afirmar que “todos os sons” das ruas
por onde circulou e da casa em que viveu a menina que foi “possuem essa
secreta propriedade de a transportarem por profundas viagens” (Idem:
p.124). É o gosto estranho dos restos de remédios que “ardiam na
língua” (Idem: p. 11) que conduz sua lembrança adulta à experiência das
arrumações feitas na casa nos dias que se seguiram ao de sua orfandade. É em
objetos entrevistos um dia – “vestígios”, como dirá em poema de 1957
( Da solidão. IN: MEIRELLES: 1994. p. 1121) - que irá identificar, ao
escrever suas memórias, os traços tênues da presença dos pais, cujos rostos
não pode lembrar: “os olhos azuis-verdes-cinzentos paravam no ar, e
recordavam outras coisas, subitamente: um par de luvas brancas, de homem ...
uns sapatinhos de bico fino e pompom” (MEIRELES: 1983. p. 7). É o toque
de seus dedos infantis que a fazem, já mulher, rememorar o imenso armário da
casa de sua avó, e retornar no tempo para nomear sentimentos: “num canto,
entre as sedas, sente-se a guitarra encostada. [...] Da ponta do dedo sobe
uma angústia pelo braço acima.” (Idem: p. 15)
Quando entoam um coro, os cinco sentidos deixam perceber
na narrativa as inflexões da sonoridade grave da reflexão madura de Cecília,
que retoma e re-significa o eco agudo de suas sensações de menina, num
exercício em que a poeta maneja com destreza toda a escala de figuras
literárias: “Roda a máquina de costura. A coisa mais linda do mundo é ver
encher a bobina de linha: ffffff.......... – vai se enrolando o fio no longo
carretel, docemente, docemente. De súbito, os metais resvalam, ouve-se um
fino silvo: zzz... – está pronto. A mão recolhe-o com ternura. Parece uma
cigarra, um inseto sonoro, de asas fechadas.” (Idem: p. 29).
Rememoração em fragmentos orquestrada pelos sentidos. Ao
retomar esses pedaços do vivido ao sabor dos movimentos caprichosos da
memória, Cecília encontra, nela, “a criança” que “via o jogo
confuso de suas lembranças, trançando-se e destrançando-se” (Idem:
p.12). Sempre uma lembrança despedaçada, “Trapinhos de seda
branca...Pedaço de fita...Resto de renda...” (Idem: p.7).
Refletidos no espelho das lembranças, os episódios
vividos e as sensações experimentadas se multiplicam, como num
caleidoscópio, e ganham novos significados, entramados com a imaginação da
escritora adulta, que tantas vezes utilizou em sua poesia a metáfora do
espelho.
Em 1938, ano anterior ao da primeira publicação de
Olhinhos de Gato na revista Ocidente, Cecília obtivera o primeiro
prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras para aquele ano com o
livro Viagem, que recolhia poemas escritos entre 1929 e 1937. Num
deles, Ressurreição, é possível encontrar uma das muitas alusões ao
simbolismo do espelho:
Não cantes, pois trancei o meu cabelo
agora,
E estou diante do espelho, e sei melhor que ando
fugida” (MEIRELES: 1994. p. 144)
Em Olhinhos de Gato, aparecem
infinidades de espelhos, alguns deles refletindo nas recordações da mulher
adulta centelhas de seus primeiros anos, outros, mudos e incapazes de
mostrar os rostos desejados, para sempre perdidos. “Espelhos sem
reprodução”, como os de sua poesia (Idem: p.151.).
Quando lembra a menina que foi, reconhece nas ausências
refletidas nos espelhos opacos de sua infância a imagem de uma memória, ao
mesmo tempo, “fiel e móvel” (LE GOFF: 1984. p. 46.):
Olhinhos de Gato pousava então a vista no
espelho, procurando, procurando. Todos aqueles rostos deveriam ter
passado por ali... Mas o espelho ainda é mais infiel do que a memória
humana...” (MEIRELLES: 1983. p. 7).
No fim da vida, intuirá que o registro lacunar
da memória e seu jogo de espelhos é a única via possível para o encontro com
a própria identidade. Em versos escritos três anos antes da morte, dirá:
“São os espelhos que me revelam:
Sem eles eu talvez não soubesse de mim. “
(Personagem. IN: MEIRELLES: 1994. p. 1189.)
Na melodia de sua prosa poética memorialística,
cada compasso recolhe magia e sonho.
As cantigas de roda; o homem do realejo; as brincadeiras
infantis; as peças de morim engomado para a roupa feita em casa; os pregões
dos vendedores ambulantes; o batuque dos tambores; os vaga-lumes enchendo de
estrelas os jardins noturnos; as superstições e crendices; as canções de
ninar embalando o sono; o trinado dos canários nas gaiolas; o balão de
Santos Dumont; a sabedoria dos ditos e tradições populares; os cantos das
muitas vozes do povo; o carnaval dos cloves, do Zé Pereira, dos confetes e
serpentinas; o coro das cigarras no verão; as rezas de todos os credos; os
bondes puxados por burros; o som dos pianos escapando pelas janelas; as
casas com quintais e goiabeiras; o violão das serenatas; o leilão de prendas
para as obras da igreja; as quadrinhas rimadas; os presépios com lagos
feitos de espelhos; o mata-mosquitos; as sete igrejas visitadas na semana
santa; os Judas malhados no sábado de Aleluia; os quiosques pela cidade
inteira; a Mula Sem Cabeça e o Saci Pererê; o enterro dos anjinhos; as
roupas cheias de entretelas e barbatanas que aprisionavam os corpos; os
sinapismos; o carro do hospício; as bexigas que deixavam marcas indeléveis;
o medo de todas as outras epIdemias; a miséria pelas calçadas; a tísica e a
febre amarela; o preconceito naturalizado nas conversas; a lanceta da
vacina.[10]
São magia e pecados do quotidiano das ruas da cidade. Retalhos de uma
memória que é de Cecília, mas que também pertence a outros que, como ela,
foram crianças no Rio de Janeiro do início do século XX.
Há também no livro momentos únicos e só seus, o muro de
livros construído com cuidado “para separar-se definitivamente do mundo
de todos” (MEIRELES: 1983. p. 87); o sonho com o piano mudo
(Idem: p. 124), o momento mais doce, quando se aninhava no colo da avó e
“ficava entre o seu rosto e o livro” em que lia suas orações (Idem: p.
106); a aversão pelos “meninos, caçadores de borboletas e passarinhos,
amarradores de caudas de libélula e rabos de gato, quebradores de vidraça e
apedrejadores de frutas“ (Idem: p. 103) revelada na recusa em ir ao
encontro do primo de pastinha; o sumiço do cachorrinho Jasmim (Idem: p. 68);
o mundo de ternura e fantasia que lhe oferece Pedrina, a babá querida que
ganha o apelido de Dentinho de Arroz (Idem: p. 44); o choro
desconsolado da “menina aterrorizada com o poder destruidor do vento”
(Idem: p. 42); o guarda-roupa enorme, refúgio e fonte inesgotável de
tesouros infantis (Idem: pp. 102, 121). Sonhos e terrores noturnos de sua
intimidade, vividos na privacidade da casa onde cresceu ou no território
recôndito dos seus sentimentos[11].
Recortes de um mundo que nem com os mais amados é possível dividir.
Da primeira a última página, a morte, refrão sempre
repetido, presença constante nessa rememoração caleidoscópica. Memória em
carne viva da morte dos pais e dos irmãos, de quem não tem nenhuma lembrança
(Idem: pp.71-72, 86, 88) . Morte do canário, do gato e do burrinho (Idem:
pp. 22 – 23). Morte do avô “debaixo do imenso cajueiro” (Idem: p.
33). Medo da morte da avó que ela deseja imortal. (Idem: p. 35). Medo da sua
própria morte entrevisto nos olhos amorosos da avó e de Pedrina. (Idem: p.
65 - 66). Dor da perda do calor e da segurança das mãos de Có nas suas mãos
adormecidas, ecoando outra perda, a do cachorrinho arrepiado que Maria
Maruca disse que fugira, uma dor como “uma estranha coisa que se passou
dentro dela, como se um pássaro preto e grande pousasse no seu peito e em
silêncio a apertasse nas garras, para sempre, e cada vez mais” (Idem:
pp. 66-67 e 81). Dor da descoberta do ciclo da vida na natureza, já que
“até os dias são de vida e de morte” (Idem: p. 105). E, diante da morte,
o sentimento mais fundo: “Solidão, solidão... acumulam os dias solidão.”
(Idem: p. 69).
No livro, a menina lembrada “vai andando para longe,
com seus cacos de vidro e seus pedaços de concha” (Idem: p. 19). Com
eles, sua escrita madura comporá um mosaico de lembranças, justapondo
passado e presente, e repetindo através de suas confissões íntimas os ritos
ancestrais da liturgia de toda memória. E não é de todo estranho que o faça
como se entoasse uma lamentação fúnebre, uma vez que para a Cecília da
segunda metade dos anos 30, a que publica em Portugal suas memórias
infantis, a morte estava longe de ser apenas a dor remota da infância vivida
na orfandade. A morte, o luto, a solidão e os projetos desfeitos são
experiência vivida e matéria sublimada em sua poesia.
3. Descobrimentos
Convém lembrar que qualquer escrito é, de
alguma maneira, autobiográfico como bem o sabia José Luis Borges, que em
El tamaño de mi esperanza, publicado em 1926, assegura com ênfase:
Este é meu postulado: toda literatura é,
finalmente, autobiográfica. Tudo é poético na medida em que nos confessa
um destino e na medida em que nos fornece, dele, um vislumbre. (...)
Toda poesia é plena confissão de um eu, de um caráter, de uma aventura
humana.” (Apud LEFERE: 1988. p.44).
A observação é particularmente iluminadora no
que diz respeito à obra toda de Cecília Meireles e, em especial, à sua
poesia[12]. Mas também é oportuno lembrar a
especificidade de um escrito memorialístico, aquele que supõe
a audácia de pronunciar-se sobre si mesmo e os demais, de
atrever-se a dizer quem é seu eu, com todos os riscos e perigos. Em suma:
transfigurar sua carne e seu espírito em um espelho textual” (LOUREIRO:
1991. p. 5).
Em Olhinhos de Gato Cecília Meireles oferece um
tecido textual complexo. A narrativa da magia e dos sonhos, dos medos e dos
lutos de seus primeiros anos pode ser duplamente autobiográfica. Escrita
confessional de suas dores e alegrias de menina, é também refúgio de outras
confidências, mais expressivas do momento em que decidiu publicizá-las.
Nas confissões infantis feitas pela mão adulta de
Cecília, vai-se revelando aos poucos um método memorialístico próprio,
urdido na introspecção, no devaneio, todo ele viagem pelo território das
“paisagens secretas” de seu mundo interior. Assim, no espelho do texto,
“a menina olha, pensativa” (MEIRELES: 1983: p. 31) para os
acontecimentos corriqueiros, “observa em silêncio” (Idem: p. 17) os
que a cercam, e vê “muito mais” (Idem: p. 58) porque aprendera a “ver
o que há por dentro” (Idem: p. 76) de tudo o que a cercava.
Para a poeta-mulher que rememora, a menina que um dia
fora já sabia
“que o sentido devia estar por dentro, no mundo
invisível. O sentido devia nadar por detrás, naquele outro lado das coisas
que é também o outro lado das pessoas – o lado de que se fica triste sem que
os outros vejam, e onde se pensam coisas que os outros não sabem” (Idem:
p. 81).
Por que do interior de sua própria dor adulta olhava seu
universo infantil, podia dizer que, criança, de dentro de casa, na cadeira
de vime que ganhara da avó, “sentou-se para ver a rua – e viu o mundo”
(Idem: 131).
A rememoração, seguindo os roteiros caprichosos e
inesperados que lhe são próprios, insere na narrativa memorialística a
descoberta de um ritmo, como se na mão habituada à métrica da poesia
vibrasse o movimento uniforme da respiração e o pulsar constante das batidas
do coração, sinais de que permanecia viva quando tudo a seu redor – pessoas
amadas, planos, projetos, realizações, segurança – parecia contaminado pela
morte. E, no movimento de sua construção, a memória a leva para a lembrança
de uma noite antiga, em que
“Quase adormecido, o dedo da menina caminha pela
parede assim:
Ela mesma não sabe como foi: ela descobriu com
surpresa uma coisa que não acaba.
E dorme tranqüila com esse descobrimento” (Idem:
p. 24)
Por três vezes o desenho aparece no livro, mapa da
descoberta da terra prometida onde “há coisas que não morrem” (Idem:
p. 48). Primeiro, na “secreta magia” do repetir-se interminável dos
bordados, das rendas e do ponto russo (Idem: ibidem). Depois, na alegria de
saber que as mão de Có, aquelas mesmas mãos que, enlaçadas às suas mãos,
davam segurança a seu sono, sabiam bordar o infinito no ponto de espinho das
bainhas das suas calcinhas novas: também no trivial e no prosaico podia
estar presente o que “não acabava nunca” (Idem. p. 64). Muito mais
tarde, em 1959, Cecília atribuirá à palavra esse mesmo e extraordinário
poder de superar a finitude, em poesia que retoma não poucas referências
constantes nessas suas memórias de infância :
As palavras não morrem,
Tão leves e cheias de eternidade.”
(Além das paredes, dos móveis. MEIRELES: 1994.
p. 1135.)
E, se o desenho três vezes repetido pode ser
lido como a cartografia de seu descobrimento, não faltam em Olhinhos de
Gato expressões discursivas dessa viagem toda interior. Simétricas e
opostas, engastadas no primeiro e no último capítulo do livro, o leitor
atento encontrará as duas crônicas dessa navegação.
Na primeira, a memorialista relata a possibilidade de
encontrar o segredo do grande descobrimento ao rés do chão:
“O assoalho que os outros pisam
indiferentes, tem, no entanto, suas paisagens secretas. É porque ninguém
contempla muito as linhas e as cores da madeira. Algumas, na verdade,
são lisas, da mesma cor, em tons de pele humana – amareladas, róseas,
morenas. Outras, porem, encerram desenhos tais que, olhando-se para
dentro delas, poder-se-ia dispensar qualquer lugar do mundo. A princípio
parecem apenas riscos, sem nenhuma significação. Mas pouco a pouco se
observa que há ondulações de águas, praias, montanhas, um estremecimento
de pássaros, florestas densas, que escurecem – logo um súbito jorro de
estrelas e de luas, borboletas infinitas adelgaçam as asas riquíssimas,
e santos de mãos postas pairam por cima de encrespadas nuvens... Há um
outro mundo, no assoalho que se pisa indiferente. [...]
Há outros mundos, também, noutras coisas esquecidas;
nas cores do tapete, que ora se escondem ora reaparecem, caminhando por
direções secretas. As pessoas de pé, olhando de longe e de cima, pensam
que tudo são flores, grinaldas de flores...flores... Mas Olhinhos de
Gato bem sabe que ali há noites, dias, portas, jardins, colinas, plantas
e gente encantada, indo e vindo e virando o rosto para lhe responder,
quando ela chama...
Por isso é tão bom andar pelo chão, como os gatos e
as formigas. Por baixo das mesas e das cadeiras reina uma frescura que a
madeira conserva como a sombra que projetou no tempo em que foi árvore.
É desse lado que se pode ver como certas coisas são feitas: recortes,
parafusos, encaixes, pedaços de cola... É desse lado que as coisas são
naturais e verdadeiras, como nós, quando nos despimos.” (MEIRELES:
1983. pp. 12 e 13.)
Na segunda, última página e ponto final do
livro, o relato do descobrimento supõe a experiência inversa. Não a de ver,
com clareza meridiana, a chave do mistério naquilo que os demais apenas
olham indiferentes, mas a de passar pela dura experiência de nada ver para
poder, então, enxergar e compreender. No escuro, apenas os que tem olhos de
gato são capazes de ver.
“[...] debruçada para o mundo, foi que ela
realizou seu imenso descobrimento.
Bastava olhar para o céu de noite, e acontecer
cair-lhe na vista a ‘Gota-serena...’ Bastava passar pelos olhos a mão
suja do pólen das mariposas....
Passou a ser cega e a viver no mundo dos cegos – com
a noite por todos os lados e apenas a própria memória sustentando a
noção de sua presença como uma pessoa perdida de noite numa casa escura
e fechada. Como um enterrado vivo com as mãos pelas raízes, por baixo do
chão...Assim esteve a menina ceguinha, sem encontrar sua roupa, sem
saber sentar na cadeira, sem distinguir mais o lado certo da porta, sem
perceber quem vinha pela sua frente... [...]
Quando recuperou a vista, Olhinhos de Gato
compreendeu que voltava de uma profunda viagem, e realizara um imenso
descobrimento.
[...]
Sem sair do lugar andou por estranhos lugares, e sem
que ninguém reparasse passou para dentro de todas as vidas.
[...]
E tudo era ser e deixar de ser.. Como quem despe um
vestido, como quem solta um brinquedo e apanha outro: assim. Assim
facilmente. E não apenas as pessoas: mas também os animais. Sentiu-se
cachorro, morcego, formiga, lesma... [...]
Então, foi vegetal também. [...] foi tudo e nada ao
mesmo tempo.[...]
E todos os mortos estavam em redor olhando: de
dentro dos espelhos, de dentro dos quadros, de dentro do álbum, ou
puramente nos ares – todos juntos e cada um deles sozinho, sozinho...
E ela via os mortos e os vivos. E os vivos não
sabiam. Nem talvez os mortos, também.” (Idem: pp. 134 e 135).
Não se trata, certamente, de postular um
especial mérito estético para esse texto memorialístico pouco conhecido no
conjunto da obra de Cecília Meireles. Trata-se, isso sim, de dizer que
Olhinhos de Gato, um de seus livros menos lidos uma vez que os leitores
infantis a quem o livro está destinado em seu atual formato editorial
provavelmente tropecem num texto que não foi escrito para eles e, por
contrapartida, poucos leitores adultos freqüentam por ser apresentado como
literatura infantil, pode revelar “paisagens secretas” e inesperadas
da própria escritora.
É na memória de infância que estará a confissão de seu
grande descobrimento: o segredo ao mesmo tempo terno e doloroso da poética
de sua própria educação sentimental. É no mar absoluto da solidão,
desde muito cedo navegado, que a poeta adulta descobre, na Cecília-menina
que sua lembrança constrói, o roteiro da viagem em busca incessante daquilo
que foi o seu santo-graal: algo que nunca conheça a morte. A palavra
poética.
É o que pode sugerir uma das leituras possíveis de
Olhinhos de Gato e é também o que a própria Cecília parece indicar em
sua poesia:
“Procurei-me nesta água da minha memória
que povoa todas as distâncias da vida
e, onde, como nos campos, se podia semear talvez
tanta imagem capaz de ficar florindo...”
(Medida de significação. IN: MEIRELES: 1994: p.
149)
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(res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2001.
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(3ª edição- 1ª reimpressão).
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Poesia sempre. Ano 8, nº 12. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, abril
de 2000.
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Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. (Enciclopédia Einaudi.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. (2ª edição).
________________: Poesia completa. Rio de Janeiro:
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________________: Obra em prosa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998. (volume 1 – tomo 1: Crônicas em Geral.)
(Apresentação e planejamento editorial de Leodegário A. de Azevedo Filho).
________________: Obra em prosa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999. (Crônicas de viagem 3.) (Apresentação e
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Nova Fronteira, 2001. (Crônicas de educação 1.) (Apresentação e
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Rio de Janeiro: Mauad, 1999. (4ª edição).
ZAGURY, Eliane: Cecília Meireles: notícia
biográfica, estudo crítico, antologia, bibliografia, discografia, partituras.
Petrópolis: Vozes, 1973.
Notas:
[1]
Margarida de Souza Neves é doutora em História, Professora do Departamento
de História da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq.
[2] Conforme esclarecimento
prestado pela Editora Moderna, a 13ª re-impressão e mais recente dessa obra
de Cecília Meireles é de março de 2001.
[3] Carta manuscrita de Cecília
Meireles. Rio de Janeiro, janeiro de 1936.
[4] Idem. Ibidem.
[5] Sobre a história do Pavilhão
Mourisco e o episódio de seu fechamento, ver, nessa coletânea, o capítulo de
Jussara PIMENTA: “A biblioteca infantil do Pavilhão Mourisco.”
[6] De Olhinhos de gato
foram retirados 10 parágrafos que constam da crônica publicada em A
Manhã.
[7] Reino da solidão é uma
crônica que Cecília Meireles faz reaparecer no livro Giroflê. Giroflá,
que publica, em edição limitada, no ano de 1956 e que será muitas vezes
re-editada pela Editora Moderna a partir de 1981, na mesma coleção didática
em que, como livro, Olhinhos de Gato
foi publicado.
[8] Joana Cavalcanti de Abreu,
Mirella De Santo Farias e Luiza Larangeira da Silva Mello, como bolsistas de
Iniciação Científica do CNPq, realizaram, entre 1997 e 1998, a pesquisa nas
séries do jornal A Manhã disponíveis na Biblioteca Nacional que
permitiu localizar essas crônicas, agora já, em parte, divulgadas por
Leodegário A. de Azevedo Filho no Tomo I das Crônicas em geral e no
tomo 3 das Cônicas de viagem, volumes já publicados da Obra
em prosa
de Cecília Meireles.
[9] A expressão está tomada do
título do livro Escribir la infancia. Narradoras mexicanas contemporaneas,
organizado por Nora Paternak, Ana Rosa Domenella e Luzelena Gutierrez de
Velasco (1996).
[10] Para identificar no texto
de Olhinhos de gato as referências citadas, ver: cantigas de roda pp.
91, 101, 109, 121; o homem do realejo: p. 109; as brincadeiras infantis: pp.
30, 44, 63, 70, 79, 81, 92, 111, 116, 117-118, 125; as peças de morim
engomado para a roupa feita em casa: p.26; os pregões dos vendedores
ambulantes: pp. 22, 47, 49, 50, 51,109; o batuque dos tambores: p. 74; os
vaga-lumes: p. 27; as superstições e crendices : pp. 9, 16, 18, 44, 56, 71,
84, 90,106,132; as canções de ninar: p. 46; os canários nas gaiolas: p. 21,
59, 60; o balão de Santos Dumont: p. 87; os ditos e tradições populares: p.
13, 21, 27, 29, 37, 40, 83, 85; os cantos do povo: pp. 23, 25, 26, 27, 29,
31, 40, 54 , 75, 89; o carnaval dos cloves, do Zé Pereira, dos confetes e
serpentinas: pp. .94, 97-100, 128; o coro das cigarras: p. 35; as rezas: pp.
17, 42, 84; os bondes puxados por burros: p. 61; o som dos pianos escapando
pelas janelas: pp. 52, 124; as casas com quintais e goiabeiras: pp. 32, 35);
o violão das serenatas: p. 28, o leilão de prendas para as obras da igreja:
p. 126; as quadrinhas rimadas: pp. 40, 45 75, 88, 110, 117; os presépios: p.
89; o mata-mosquitos: p. 87; as sete igrejas visitadas na semana santa: p.
108; a malhação de Judas: p.110; os quiosques: p. 98); a Mula Sem Cabeça e o
Saci Pererê: p. 44; o enterro dos anjinhos: p. 55; as roupas cheias de
entretelas e barbatanas: p. 64; os sinapismos: p. 66; o carro do hospício:
p. 55; as bexigas: pp. p20, 118, 119); o medo de todas as epIdemias: pp. 39,
68, 83; a miséria pelas calçadas : pp. 18, 98,133; a tísica e a febre
amarela: pp. 20 e 74; o preconceito naturalizado: pp. 16, 37, 42., 74 , 75,
95, 99, 126); a lanceta da vacina : p.120-121).
[11] Para aprofundar a relação
entre memória e sentimentos, ver BRESCIANI, S. e NAXARA, M. (org.): 2001.
[12] Em recente artigo sobre o
itinerário de Cecília como cronista, Valéria Lamego sublinha o “aspecto
altamente autobiográfico” da crônica (LAMEGO: 2000. p. 234). |